sexta-feira, 4 de fevereiro de 2011

As mulheres de véu

            Sahar* é uma senhora muito simpática. Sorriso impecável no rosto, olhar doce e modesto. Chega de mansinho na sala e, todos os dias, projeta seu habitual "Hello, How are you?", sempre acompanhada da fiel bengala que dá suporte à dolorida perna. Ela poderia fazer uma cirurgia para amenizar o problema, mas o medo faz adiá-la. No entanto, um outro temor de Sahar, o de usar computadores, é o que me chama mais atenção.
            O problema é que nas aulas da faculdade praticamente todos os professores utilizam-se de portais na Internet para receberem trabalhos. Neste ambiente virtual Sahar se vê perdida e algumas de suas notas baixas, resultado da não participação nestes espaços, a levam a abandonar a aula. Ela me conta sua dificuldade com a informática muito tarde para que eu possa ajudá-la. E me faz uma confissão, no seu tom de voz mais cauteloso, sereno e humilde:
            - Eu tenho medo de usar, sabe. Depois de toda aquela coisa de muçulmanos e Internet, fiquei meio assim, não sei, não consigo.
            Sahar é da terra dos aiatolás e do polêmico presidente Mahmoud Ahmadinejad. Os poucos cabelos que aparecem escondidos sob seu véu mostram-se brancos como algodão. Sua experiência de vida e sua longa carreira como professora no Irã me fazem questionar o porquê Sahar alimenta um trauma, de certa forma, tão inocente, de talvez ser confundida com um terrorista cibernético por usar um computador e ser muçulmana. Tudo bem, ela é uma imigrante nos Estados Unidos, a terra do 11 de setembro. Mas a convivência com muçulmanos nos EUA tem me mostrado que eles são mais comuns aqui do que se imagina, construindo uma situação paradoxal na minha cabecinha.

 
            Certo dia, no caminho para a sala, começo a ouvir vozes masculinas cantando algo numa cadência que me parecia um lamento. No corredor à direita vejo uma cena diferente: acho que estou vendo o Aladin na minha frente. Um rapaz de cabelos lisos e pretos, pele morena e turbante está agachado num tapete persa voador. Ops, não voador. Ao seu lado, um rapaz de longos cabelos acompanha os rituais do amigo. Os dois estavam rezando (e bem alto) para Alá, virados para a Meca e nem aí com o que os outros estavam pensando.


            Após a cena, ao entrar na sala, percebo que a vietnamita ao meu lado me olha com uma cara surpresa, do tipo "O que era aquilo ali fora?". Fico pensando que aquilo não deveria a surpreender, porque o que não é difícil é encontrar muçulmanos na faculdade. Mulheres de véu são muitas, a começar pelas que estão na sala enquanto a vietnamita me olha com cara de espanto. Ao meu lado está a moça do Iêmen, do outro, a do Sudão e de Omã, mais à frente, Argélia e Irã, e no outro extremo da sala, a garota do Senegal. Com exceção da última, todas usam o véu.
            De início curiosa, após algumas semanas fui perdendo o olhar intrigado em relação às garotas de véu. A maioria utiliza a peça bem colada ao redor do limite do queixo, algumas até prendendo o pano sobre ele, quase próximo da boca. Minha colega do Iêmen tenta me explicar que para ela o objeto é nada mais que uma roupa qualquer. Para Aisha*, não usá-lo seria como estar sem calças.  


Faatin*, do Senegal, passaria desapercebida como uma de minhas lindas primas negras do Rio de Janeiro. Não seria difícil imaginá-la sambando no meio da Sapucaí de fantasia. Tem movimentos abertos, à vontade, veste-se à moda ocidental, lindos vestidos coloridos, blusas de alçinha, roupas coladas. É muçulmana. Pergunto o que acha do véu, porque não o usa: “Eu não uso agora, mas não tenho nenhum problema em relação a ele. Quando casar, se meu marido quiser, usarei”. Já Asalah*, do Sudão, utiliza o véu de forma bem leve no rosto, deixando a mostra seu pescoço, brincos e parte dos cabelos. Ela ajeita o adereço sem o menor pudor, retirando e recolocando-o no meio da aula, aos olhos de quem queira ver.
            É difícil entender as “diferenças” que o Islamismo tem em cada país. Mas como minhas colegas me respondem, é uma questão de cultura. A religião tem seus preceitos, leis, mas acaba integrando-se aos diversos elementos culturais. E não era para ser diferente, já que o Islã é praticado por cerca de 1,3 bilhão de pessoas, sendo a segunda maior religião do mundo – a gente vive tão dentro dessa face cristã que se esquece disso.
No caso de Asalah, imagino ela como um meio-termo ao ser mais “adaptável” ao ambiente cultural novo. Não mantenho muito contato físico com ela (o que é difícil com a minha latinidade), mas certo dia ela faz questão de me cumprimentar com as mãos – entendo logo o motivo -, lindamente pintadas de henna. No entanto, quando tento aproveitar a brecha e perguntar em que tipo de festa ela teria recebido a arte (e eu que achava que assistir O Clone nunca me ajudaria em nada), Asalah me dá uma resposta vazia e acaba o assunto por ali mesmo. Já tinha mostrado suas belas mãos e por ali estava bom.


Após pouco tempo, acreditando que existisse uma versão do católico não-praticante no Islamismo, perco a total cerimônia na frente de minha amiga Nazeeha*, que me parece, se enquadra nessa minha categoria inventada – a de muçulmana não-praticante. Nazeeha é um daqueles tipos que você nunca imaginaria conhecer: nascida no Turcomenistão, criada na Rússia mas estudante de escola turca – não a confunda com uma turca, ela é turcomena, por favor.
Me parece inevitável questioná-la se já viu o filme Borat, já que o Casaquistão fica ali, pertinho do Turcomenistão. Ela não tem nem ideia do que estou falando. Talvez minha piadinha soe para ela achar que Argentina e Brasil são a mesma coisa, e que macacos e favelas são o cenário dominante na nossa terrinha. Mas não consigo me conter. Devo ter desmanchado a boa impressão que criei, quando no primeiro dia ela me disse de onde era e eu respondi que já havia ouvido falar de seu país. Nazeeha ficou contente pois compartilha do estereótipo de que americano não gosta muito de geografia (eu, particularmente, acho que essa ideia é uma exceção à regra).


Nazeeha não usa véu e não fez cerimônia ao estreitar relações comigo. Somos amigas, não colegas. Nos vemos, nos telefonamos, vamos ao cinema, saímos para comer. Isso me bastaria para dizer que ela é "diferente". Mas tive a reconfirmação de minha idiotice. Nazeeha sempre ia no mesmo restaurante e comecei a achar que estava interessada no rapaz que lá trabalhava. Ela hesitava em me explicar o porquê de comer lá sempre. Após algumas semanas, ela me contou que seguia o Halal. Comecei a notar certas ideias, percepções diferentes nela, que talvez soariam meio "ortodoxas" para mim. Percebi que apesar de não usar o véu, minha amiga sempre vestia camisetas que vão até os cotovelos e calça. Fico pensando nas mil piadas indiscretas que lhe contei, de sua risada nervosa e seus tapinhas no meu braço após ouvi-las.
Penso em todos os muçulmanos que conheci e lembro-me de como o humor brasileiro não perdoa ninguém e de como, de certa forma, me sinto culpada em rir das piadas sobre homem-bomba.


Há alguns meses atrás o noticiário na TV americana se focava em uma coisa: a construção de uma mesquita e centro islâmico muito próximo do chamado ground zero, o local onde ocorreram os ataques às torres gêmeas. De um lado argumentava-se que aquilo seria inconveniente pois causaria um mal-estar às famílias das vítimas; afinal, aquela ferida ainda estava aberta. De outro, e que a maioria da imprensa apoiava, dizia-se que o protesto era um retrocesso da sociedade americana pois aqui a liberdade de expressão e religião sempre foi respeitada. A situação era delicada, mas seria preconceituoso julgar que a mesquita lembraria os terroristas, como se todo muçulmano fosse fanático e homem-bomba. O que os brasileiros fazem de piada sem culpa, americanos levam à sério – muito plausível diante dessa proximidade maior com a cultura islâmica.
            Acabo de descobrir que a belíssima muçulmana negra da minha sala é casada com um African-American judeu. Como entender a dinâmica dessa relação? Ela diz que tem problemas com a família dele, que tem dificuldade em aceitá-la. E isso não é diferente do que a escritora Hadia Mubarak diz em seu artigo, de como é difícil ser aceita como uma americana antes da visão de uma mulher de véu. Mubarak é, antes de mais nada, americana nascida em New Jersey. No entanto, sua religião ainda a coloca no estereótipo de estrangeira.


            Lembro-me da tarde de apresentações no College, e como o santur do estudante iraniano soou belíssimo, e como a apresentação dele acompanhado da percussão do colega baiano foi melhor ainda. Essa integração Irã-Brasil me faz lembrar de Sahar que, após ver-me abraçar uma pernambucana no último dia de aula, espantou-se, como todos na sala, com o acalorado jeito brasileiro. Meu engano. Ela não se espanta, identifica-se. Levanta-se, me abraça apertado, me beija e me deseja boa sorte. Aquilo me pareceu um adeus. Talvez a barreira que via em sua amizade não era a do distanciamento cultural, mas o simples fato de Sahar ser uma senhora com vida própria e ocupações. Talvez devesse tentar enxergar o Islã como uma religião, elemento cultural, e ver, mais além, a fortaleza, personalidade e segurança das mulheres muçulmanas que conheci. Nunca mais vi Sahar, a senhorinha de bengala e véu, mas sempre lembrarei de seu doce sorriso. 

               O cara que tocou com o baiano é o da extrema-esquerda!

* Achei de bom-tom trocar os nomes de minhas queridas colegas já que discrição é o que as definem.

11 comentários:

Adri Baldessim disse...

Mari, muito obrigada pelo texto!

Cahe´s blog disse...

ATÉ QUE ENFIM DEIXOU A PREGUICITE ESCRITÍCIA DE LADO... 125 dias em coma!

Para aquelas que vivem reclusas nos qstão da vida deve ser mais fácil viver dentro das burcas, véus e cia. temendo o demônio ocidental, mas para as que experimentam o outo lado da vida, deve ser mais difícil.
Que cultura enraizada é essa? Lavagem cerebral desde a infância?
Não sou contra religião alguma, mas a mulher deve ser respeitada, antes, como ser humano e ter direitos iguais.
=> Você leu o Livreiro de Kabul?

Ah sim, ainda me deve o post sobre futebol americano, ainda mais agora que o meu Green Bay ganhou o SuperBowl!


PS.: Vixi minha santa... melhor dar umas voltinhas pelas terras brasilis e relembrar certas coisitas. A Aléssio deve estar preocupada. rrssss

Abração
Cahe is a Blogger

Mariana Dias disse...

aí Carlão, não sei se posto sobre o jogo, não foi tão proveitoso qto o baseball.

e sobre a Aléssio, ele não teria ficado preocupada, teria era caído dura! huahuahua

Poderia dar várias desculpas maaas não existem desculpas pra ISSO né? haha tentei arrumar mas me diz se ainda tiver faltando algo...

ahhh, li o livreiro de kabul sim! é q faz tempo e acho q nessas horas vc acaba esquecendo das coisas ruins né, fiz o negócio pela perspectiva delas, mas não q eu ache absurdo aqlas coisas...

Unknown disse...

Como sempre Mari você escreve bem demais, parabéns!
Quando terminei de ler seu texto, refleti e percebi que é verdade.. Existem mesmo muitos imigrantes muçulmanos aí pelos States né, então pq será que rola toda essa tensão terrorista com gente do dia-a-dia americano.. as vezes gente mais americana do que Muçulmana até.. O preconceito seria mais pela aparência que eles tem que vem da cultura da religião que eles escolheram do que da própria religião.. Pq tem muita gente que não conhece e não entende essa religião, essa adoração, essa fé..
O fato é que estamos misturados e somos todos iguais e merecedores de respeito independente de cultura ou religião.

=]

Bia Moraes disse...

'Fico pensando nas mil piadas indiscretas que lhe contei, de sua risada nervosa e seus tapinhas no meu braço após ouvi-las.'

Fiquei imaginando o nível das suas piadas! hahaha ;)

incrível toda essa mistura cultural da sua sala, incrível.

amei sua percepção, de verdade

Rádio da Juventude disse...

Olá Mari como vai? É verdade, a questão da miscigenação no Brasil não pode ser descartada, o antropólogo Darcy Ribeiro dizia que nós brasileiros somos um povo novo, rico culturalmente pela diversidade e pluralidade. Neste texto apenas não tivemos a intenção de retirar isso, apenas fazer a crítica que houve um processo brutal que precisamos abrir nossa percepção pra nos entendermos e avançar enquanto nação, outra frase dele é que uma nação para se tornar grande precisa conhecer sua origem para fortalecer sua identidade. Tchau!

Rádio da Juventude disse...

Oi, então Mari, não acho a identidade superficial, mas penso nela com uma identidade adormecida dentro de cada um de nós, e por isso pouco a conhecemos também, devido uma negação que existiu durante muito tempo no Brasil, e que ainda existe infelizmente de forma não assumida por determinada parcela da sociedade.
Uma coisa olha São Paulo, por exemplo: Há uma infinidade de lugares com nomes indígenas, Ibarapuera, Anhangabaú e por aí vai. Por que isso? Durante trezentos anos de colônia a língua que predominou em São Paulo foi o nhangatu, até que o Marques de Pombal proibiu com sentença de arrancar a língua de quem não falasse o Português, olha que coisa interessante que nos foge a história e que é tão importante para nossa identidade, o que implica aí uma reconstrução histórica. Em relação a propor algo sobre a criminalização da pobreza, penso que é necessário discutir isso na raiz, nas escolas e Universidades, retirar o olhar etnocêntrico de que a favela é um antro de perversidade, e isso vai passar por uma reconstrução uma reconstrução cultural, no qual a mídia tem um papel fundamental e que na maioria das vezes, age ao inverso em continuar sustentando formas de representação pejorativas, mas isso também está ligado a controle social.
Quanto ao estudo da língua africana, penso ser outra coisa fundamental e nada tem haver com racismo, é mais uma vez reconhecer que somos um povo novo, plural com uma riqueza enorme formado por três matrizes, Portugueses, Africanos e Índios.
O sentimento de pátria é verdadeiro ainda mais quando a gente se conhece e se orgulha, no Brasil não há quem não goste deste país, porque é a terra maravilhosa e tudo mais, mas poucos se orgulham realmente disso, no sentido de parar de se espelhando sempre em algo de fora, nossa aculturação se deve principalmente porque nossa cultura não está em bases sólidas.
Tchau!

Rádio da Juventude disse...

Oi, desculpe a falta de educação, sou o Ailton, prazer rsrs. Tchau! Foi uma boa EXPLANAÇÃO A NOSSA hein?

Gustavo Delacorte disse...

Atualiza isso aqui, Mari!

Isa disse...

Mari querida e sumidíssima: Aparece aí, poxaaa!!
To morrendo de saudades!!
=)
Beijinhos

Luma Rosa disse...

Que sala complexa!! Deve ser um pouco difícil conviver. Os muçulmanos que estão nos EUA querem fugir do esterótipo pregado pelo mundo que dão a todos perfil de radicais. Muito triste colocar pessoas no mesmo saco e isso se chama: Falta de cultura - A visão muda depois que passamos a perna na ignorância. Beijus,