sábado, 12 de abril de 2008

Sobre dinâmicas, estereótipos e julgamentos

Com a inteção de participar do projeto Oficinas Querô, lá fui eu ao Sesc de Santos no primeiro dos três dias do processo de seleção. Era mais uma no mar de gente que disputava uma das vagas do projeto. O Querô é voltado para jovens de regiões periféricas de Santos, São Vicente e Guarujá, e oferece uma oficina de cinema.


Eu não moro em região periférica, mas como o máximo que tenho no bolso são dez (centavos), achei que tinha uma chance. E como no site do Querô não havia nada que especificasse o perfil dos interessados, eu, esperançosamente, acreditei que não era mais necessário morar em área periférica.


Chegando lá, quando avistei toda aquela gente, desanimei. Não pelo grande número de pessoas, mas porque imaginava que a seleção seria de forma individual, por uma conversa, entrevista. Mas não, era claro que estava por vir uma dinâmica de grupo. Horas como boba alegre com outros bobos alegres, e todo mundo querendo se destacar da manada sem saber ao certo de que forma.


Logo de cara vi que a coisa não ia dar certo. Quando entrei na sala, que não possuia o número de cadeiras sufucientes para o de pessoas, me vi sentando no chão, com perninha de índio, e pior: com aquela calça alá insert coins. Eu poderia tentar arrumá-la que as moedinhas imaginárias continuariam a cair, pois agora faço parte da seleta associação dos semi-gordos.


Mas quando eu olho, um fio de esperança: uma única cadeira vaga, e que nenhum dos jovens ali, sentados no chão acarpetado, pareciam querer ocupar. Após descansar as pernas por alguns segundos, acho que três mais precisamente, uma garota ao meu lado, de longos cabelos lisos, óculos retangulares pretos, de pernas cruzadas que davam vista para o seu all star, desferiu palavras num ar superior pseudo-intelectual, o que não combinava com a sua face doce e angelical.


“Já tem uma pessoa aí, ela só foi resolver algo”. Eu ainda tentei dialogar, falando, “será que ela volta, bom, vou ficar por aqui enquanto ela não vem”. Mas a garota não pareceu dar muita bola, pois, no meio da minha frase já tinha virado o rosto para falar com outra pessoa. E após poucos minutos, mais precisamente dois, eu vi uma garota olhando diretamente para mim, quer dizer, ela na verdade estava flertando com a cadeira. E logo a pseudo-intelectual ao meu lado deu nova atenção, dizendo quase aflita que a dona do lugar havia chegado. De súbito resmunguei para mim mesma: “o que essa idiota pensa que tá fazendo, acha que sendo uma super guardadora de lugares justiceira vai conseguir uma vaga?. A dinâmica de grupo ainda não começou, não estão observando seus modos lisonjeiros não!”.


Lá fui eu sentar no chão, de cofre para fora. E comecei a olhar cada figura ao meu redor, pensando como foram parar ali. Haviam muitos que claramente não eram de área periférica, como eu, a pseudo-intelectual e uma outra garota de sorriso metálico. Ela vestia shorts, blusinha de marca, brincos de argola e aquela sandália-chinelo de Jesus Cristo que toda santista que se preze, e que passeia no Gonzaga, possui. Aliás, eram poucos (dentro de estereótipos) que tinham cara de que moravam em áreas carentes. Cheguei à duas conclusões: ou tentava parar de pensar de modo estereotipado, ou eu poderia mesmo acreditar que os critérios de seleção haviam mudado.


E começou a tal dinâmica. Cada um teve que se apresentar, falar nome, uma palavra que te defina e dizer o que esperava das Oficinas. Quando chegou o momento de cada um falar, eu ainda não sabia como me definir em uma palavra. O problema maior era que ela tinha que começar com a mesma inicial do meu nome, a letra m. A única coisa coerente que me vinha à cabeça era merda. Apesar de ter mais de 50 jovens naquela sala, a fila de apresentações já tinha começado, estava chegando na minha vez e a tal da merda não saía – da minha cabeça - de jeito nenhum.


Enquanto isso, as palavras clichês dos outros candidatos soavam com a maior naturalidade possível, de eu sou Jéssica e justa, à eu sou Débora doce e delicada. Existiam também os Otávios organizados, e os Silvios solidários, claro. Alguém com m disse que era metódico, mas além de ficar feio copiar a resposta dos outros, algo que não sou é metódica. Quando chegou na minha vez, a coisa mais estúpida veio em mente: mente. Mariana e mente. “Ahn? Como?”, me perguntou a coodenadora do projeto. “Mente”, eu disse, “mas não de mentir, mas de mente, pensar mesmo”. Ahan. Colou e muito, agora ela me escolhe, porque pensar é algo diferenciado que nenhum ser humano é capaz de fazer. O pior foi a piadinha de dizer que não me referia à ser mentirosa. Ninguém riu, a não ser alguns seres que não eram Silvios, mas realmente solidários.



E começaram as dinâmicas. Uma mais constrangedora que a outra. Eu tentava fingir gostar, estar integrada, mas aquilo não fazia nenhum sentido. A coisa se agravou quando todos tiveram que improvisar cenas a partir de uma palavra dita pela simpática e empolgada monitora. Apesar dos 60 jovens terem sido dividos em quatro grupos, ninguém chegava a um acordo. No meu caso, os quinze do grupo queriam falar ao mesmo tempo, chamar mais atenção. Ao invés de fazerem uma cena conversando, um gritava mais que o outro, e chegavam outros criando cenas paralelas, o que tornava a coisa totalmente desconexa. Quando vi, também entrei na gritaria. Ao final, a monitora repetia que todos não precisavam participar de todas as cenas, e que um tinha que deixar o outro falar para ser ouvido. Mas quem disse que adiantou?.


Apesar de todos quererem chamar atenção, havia um garoto, que parecia ter seus 16 anos, que se destacava naturalmente. Era o único jovem de camisa e calça sociais, gravata, sapatos e cinto combinando. Óculos preto quadrado, cabelos lisos, meticulosamente pentados para trás, brilhantes de gel. Mesmo não parecendo real, mas de um desenho, o garoto se comportava naturalmente, como se não existisse nada de diferente nele. Na brincadeira de criar cenas com uma palavra, não levantou a voz nenhuma vez, e criava histórias coerentes tentando não deixar que começassem os berreiros. Pelas suas idéias, notava-se o típico gosto por Senhor dos Anéis e filme mudo iraniano. Vaga garantida, pensei. Ele não tinha cara de rico, mas de quem conquista os objetivos com o próprio esforço.


Enquanto observava o garoto e sua tentativa de organizar os colegas, começei a ficar inquieta com a situação. Impaciente, resolvo fazer algum comentário com uma moça ao meu lado, pois observar aquilo era um tédio só. A garota, de primeira, parecia ter seus 19 anos, bonita, alta e com um olhar sério para o grupo que participava da dinâmica. Era negra e seus cabelos compridos eram entrançados. Quando puxei papo, não deu muita bola e respondeu séria com monossílabas. Outra com ar intelectual, que pensa ser cada um por sí, concluí.


Ao final das dinâmicas, perguntaram o que os participantes acharam. E as respostas idiotas seguiram – se bem que não sei o que seria uma boa resposta neste caso. “Foi ótima para fazer amigos”, “me soltei”, e por aí segue. Quer dizer, seguir não segue, porque os mais desinibidos que comentaram simplesmente repetiam o que o outro havia acabado de falar, mas tentavam parecer mais cultos. Do tipo, “do alto de minha sabedoria, foi bom para fazer amigos”. “Bom, mas além disso, é bom para realizar novas amizades”. “Não gente, indiscutivelmente, isso aumenta o meu círculo de conhecidos, e é bom conhecer novas pessoas, fazer amizade” emendou o mais audacioso.


Quando todos terminaram de fazer seus pertinentes comentários, a coordenadora deixou claro que a dinâmica não iria definir os escolhidos. Por isso, não importava se você foi mais tímido ou desinibido. Se imitou melhor uma samambaia ou gritou mais. A partir daquele dia, dinâmicas de grupo perderam mais sentido ainda para mim.


Depois de me desgatar fisicamente fazendo uma palmeira e uma motorista de ônibus, ainda tive que pegar uma sinopse, resumí-la e preencher uma lista das coisas que são necessárias para produzir um filme. Os organizadores da seleção explicaram superficialmente os itens da ficha, pois queriam testar a criatividade e o conhecimento dos candidatos. Mal começo a resumir a sinopse, a menina ao meu lado me pergunta como responder a ficha. Eu explico sem dar muita atenção, pois o tempo reservado a essa atividade é curta, e é a última do dia. Mas a garota não pára, e apesar de estar em meu momento egoísta, noto que ela está aflita.


Então olho para ela, e percebo que é a mesma moça que estava sentada ao meu lado e me respondido com monossílabas. Vejo sua ficha preenchida de forma vaga. Ela está tão perdida que me pergunta como se chamam aqueles lugares que vendem bebidas, vinhos. Ela não consegue nem formular a pergunta. Eu falo para ela, “supermercado, não?”. E percebo que não é só nervoso, é porque ela não sabe mesmo. Não tem 19 anos, como pensei, devia ter uns quinze e estava sem um dos dentes da frente. Não abria muito a boca, e colocava a mão na frente, parecendo querer esconder.


Me perguntou onde eu morava, e eu me senti sem graça e não respondi direito. Ela ainda ficou meio perdida, mas eu covardemente terminei minha atividade sem dar-lhe muita atenção. Quando eu estava para sair, uma das organizadoras chamou seis nomes (incluindo o meu) dos 60 presentes e mandou que estes não fossem embora. Haviam perdido um exercício que nós entregamos no começo do dia. Quando foram procurar novamente as folhas com os exercícios, encontraram quatro, e um garoto admitiu que não havia feito. A folha que estava faltando era de quem? A minha. Eu teria que refazer e mandar por e-mail. Paciência. Depois que ouvi a coordenadora dizer que universitários, mesmo com bolsa de estudos, não tinham chance, já desisti da vaga. Tudo bem que a coordenadora poderia ter falado isso desde o começo, e facilitado a vida de muitos ali, já que ela só foi confirmar a questão de morar em região periférica no final do dia. Mas vi que eu realmente já tive a minha oportunidade. Só espero que a minha vizinha de cadeira tenha conseguido a vaga.