sexta-feira, 17 de agosto de 2007

Izidora (parte 1)

Izidora Márcia está à procura de um emprego. Sua única experiência profissional foram duas semanas de limpeza e atendimento na academia da tia Maria Izilda. Dona Izilidinha, como é conhecida, resolveu - num momento de pura inovação e criatividade - abrir a Izilda´s Corpus, na cidadezinha de Nova Zelda do Sul. Como o vilarejo só possui dois mil oitocentos e quatro habitantes (contando-se os últimos quadrigêmeos da dona Zumira, que ficaram muito conhecidos e até apareceram no noticiário da rádio local), a idéia de uma academia soou estranha para os habitantes, que só apareceram na Izilda´s no dia da inauguração, por motivo de curiosidade. Com seis pesos e duas bicicletas ergométricas, a academia não durou mais de dois meses.

A jovem Marcinha – que não gostava de ser chamada pelo primeiro nome, pois Izidora só foi colocado devido a terrível tradição de Nova Zelda, em que todos deviam ter nomes com a letra ze – acabara de mudar-se para Conchavos, o município mais desenvolvido da região, no qual todos os jovens zeldenses ansiavam por residir. Sem experiência, graciosidade, estudo (cursou somente até a sétima série, apesar de adorar ler livros) nem beleza, Marcinha buscava de comércio em comércio uma oportunidade para mudar de vida.

Hospedada na casa de Zoraide – amiga de infância que saiu fugida de Nova Zelda com um vendedor de tapetes – ela sentia-se à vontade, mas sempre sonhava em ter sua própria casa, onde poderia incessantemente lavar o banheiro, a cozinha e a sala, e ainda comprar um televisor e colocar no quarto para assistir filmes de seu ator preferido: Patrick Swayse. Apesar de deixar o tal do currículo em vários lugares, Izidora começou a perceber que em certos comércios seu biotipo não seria aceito: sentia-se uma estranha num lugar onde todas as vendedoras eram loiras, com grandes brincos de prata em círculo e botas altas de camurça.

Certo dia, enquanto caminhava no centro de Conchavos, em uma das principais avenidas, a zeldense avistou uma pequena loja, que nunca havia visto igual na vida. Atravessou a rua e começou a observar todos os badulaques pendurados na vitrine, esculturas estranhas de bichos, gnomos, estátuas de madeira e quadros. Quando virou-se mais à esquerda, na direção da pequena porta, um cheiro muito perfumoso e diferente que nunca havia sentido saiu de dentro do lugar, e isso a fez entrar. Ao passar pela porta levou um susto, pois algumas pedras com cores cristalinas que estavam amarradas e penduradas na batente encostavam-se provocando um ruído agudo, que trazia calma aos ouvidos. A atendente, que não aparentava passar dos 30, e carregava um rosto severo sob óculos quadrados e pretos, parecia não importar-se com a chegada de um possível cliente ou estranho, e continuava a ler um livro intitulado Persuasão. Quando analisou com olhos curiosos o cenário à sua volta, Izildinha (como detestavelmente era chamada pela mãe), descobriu que aquele era o lugar perfeito para se trabalhar. Apesar de muitos objetos, que pareciam ser valiosos às vistas da zeldense, e que também deviam dar trabalho de tirar o pó, a loja não parecia ser difícil de tocar, já que além da moça de 30 e a possível cliente, havia somente algumas moscas - que rondavam um prato de doces. Era ao lado do pedaço meio comido de torta de morango que vinha a tal essência que a convidou a entrar: um comprido cigarro escuro que espalhava a fragrância por todos os lados, e que pelas letras escritas no pacote jogado, chamava flores do campo. Izidora Márcia sentiu que ali era o seu sonho de ofício, pois imaginava-se no lugar da mulher severa, lendo livros, cheirando flores do campo, e até dando uma nova vida à lojinha, já pensando em como melhorá-la e conquistar clientela.

Sem grandes perspectivas, Izidora devaneou durante alguns minutos, imaginando uma rotina metódica e fácil, abrindo a loja, limpando as peças e sentando na poltroninha da atendente, para ler e sonhar com o seu querido Patrick o resto do dia. Seus filmes prediletos eram Ghost e Dirty Dance. Quando imaginava-se na pele da doce Baby dançando encostada ao seu amor, a atendente de 30 a acordou para a realidade: - Ow!! Ei, você aí! Garota! Você está interessada em algo?. A mulher, Berenice, perguntou em tom de ironia, achando engraçado o jeito da mocinha que, pensou ela, “tinha cara de ninguém e lembrava nada”. Além de lesa, para ela, Izidora não deveria ter posses nem jeito de quem se interessava por artigos tão distintos como a Lua Crescente possuia. Apesar de deixar a loja às traças - pois o dono não ligava muito, já que tinha algumas propriedades - Berenice acostumou-se tanto com cada peça, e passou a considerá-las com tanto carinho uma a uma, que encontrava defeitos em todos que lá entravam, e não fazia questão de ser cortez e simpática como deveria.

Quando olhou bem no rosto de Berenice, Marcinha percebeu que a mulher de 30, na verdade, devia passar dos 40, pois tinha uma verruga enorme (presenteada com alguns pêlos ao redor) próximo a boca, no lábio inferior, que lhe impunha um aspecto de bruxa. Izidora afastou-se, e quando deu um passo para trás, quase derrubou um enorme Buda que estava sobre uma mesa de vidro. – Ah não. Brigada moça. Só tava olhando. Marcinha saiu em disparada da loja, e percebeu que a bruxa não iria sair daquela vida boa tão cedo, e que teria que descobrir outra vendinha tão especial quanto aquela.

Enquanto andava pelas ruas, a moça lamentava sua sorte. Percebia isso em pequenas coisas. Toda vez que ia atravessar a faixa, o semáforo sempre abria para os carros no mesmo instante, e tinha que atrasar alguns minutos para continuar a caminhada: sentia a vida sempre atrasada. Cometia gafes em momentos que considerava importantes, e não conseguia se expressar da maneira que gostaria. Sentia a lei de Murphy dominar a rotina: quando pensava que as coisas não estavam bem, elas teimavam em tranformarem-se piores.

Apesar de ser a mais nova entre as cinco irmãs (Elizabete, Elizandra, Elizete e Eliz), Izidora nunca foi paparicada, e sempre ficava com o pior pedaço do bolo e do frango, dormia na pior cama, tendo ainda que vestir as roupas usadas das irmãs, sendo que antes de chegar na sua vez, as calças, vestidos e camisetas da Elizabete já haviam passado pelas outras três parentas do caminho. Não que não recebesse roupas em datas como aniversário e Natal, mas geralmente suas tias davam-lhe vestidos floridos e muito curtos, que ao seu ver ficavam indescentes. Izidora Márcia gostava de cores neutras, como marron, begi e um verde ‘embolorado’ para ser mais audaciosa. Sua mãe, Zuleide, sempre presenteava-a com calcinhas e meias, “que são coisas que nunca devem faltar”, dizia. E assim, com um passado monótono e sem brilho, Izidora alimentava suas esperanças de mudança.