terça-feira, 2 de dezembro de 2008

Ateu não-praticante

Lendo a Revista da Semana, me deparo com a seguinte capa: “Por que acreditar em Deus? - Os novos ateus se organizam, assumem posições radicais e crêem que um mundo sem religião é possível”. A matéria comenta uma campanha ateísta que está fazendo sucesso em Londres. Uma jornalista, sentindo-se ultrajada com slogans religiosos em ônibus, resolveu não dar a outra face (é claro) e revidou arrecadando uma quantia de 375 mil reais para também colocar propagandas, mas com a frase “ Provavelmente, Deus não existe. Agora, pare de se preocupar e curta a vida”.

Sempre tive dificuldades com essa história de religião. Já passei por diversas fases. Meu primeiro teste de fé aconteceu aos sete anos. Minha avó, portuguesa (= católica), e por tabela, minha mãe, também católica, propôs que eu e meu irmão frequentássemos a tal da catequese. A idéia não deu muito certo, pois assim que ficou claro que eu não poderia ir para a casa da minha avó, na praia, aos sábados, desisti imediatamente. Minha mãe, já nem tanto fervorosa, concordou.

Mais tarde, na adolescência, rezava um pai nosso aqui e uma ave maria ali, divida entre a própria crença e a vontade de acompanhar a minha vó em tudo o que ela fazia. No ensino médio, na hora do aperto, uma oração não fazia mal, e tirar a vassoura da bruxinha de biscuit presentada por uma amiga, e esperar o pedido ser realizado, também não custava nada.

Ao entrar para a faculdade, entrei naquela fase pseudo-intelectual, e tudo ficou confuso. A frase ridícula “Eu não acredito em Deus (observem o temor na caixa alta), talvez em uma força maior que rege o universo, na natureza, na visão holística (hum, que bonito!)”, era a minha justificativa em conversas. Hoje, com algumas responsabilidades a mais, sem aquele belo e fantasioso mundo azul que dá margem à fé e à crença no ser humano, tornei-me “realista”. Agora, a frase empregada é “acredito no poder de ação das pessoas, tudo é resultado do que fazemos ou deixamos de fazer”. E é aí que entra a minha nova fase: o chamado ateísmo não-praticante.

É difícil enquadrar-se neste segmento, apesar da maioria dos brasileiros, talvez sem saber, o praticam. Na hora do almoço, num dia fresco, descubro o resto de vinho, geladinho, na geladeira. Que tal tomá-lo agora, acompanhando da comida?. Afinal, os médicos dizem que um cálice diário faz bem à saúde. “Ah não, que coisa de bêbado. Olha aí, a garrafa não quer abrir. Vou pegar o pano de prato. Não tem jeito. Hum, isso é sinal”. Acreditem, eu consegui levar isso às questões religiosas.

O anjo e o diabinho em mim iniciam uma discussão filosófica totalmente inútil. (Meu berço católico estereotipa o anjo como crente, e o diabo, como ateu, é claro. Até por que ateus vão para o inferno, certo?)

- Larga a mão de ser idiota. Que sinal o quê. Abre logo essa garrafa e pára com essa neura e transtorno obesessivo compulsivo. Aliás, isso daí é superstição, você é uma cagona.

- Não é isso. Bom, mas se não tá abrindo, é melhor não tomar.

- Vai logo mulher, prova que você não possui crença nenhuma. O que você acha que pode acontecer ?

- Nada. Está bem, Deus não existe, destino não existe. Eu vou parar de ficar “O” temendo, se Deus quiser. Ops! (Juro que essa última expressão saiu dos meus lábios).

- Merda. Agora toma o vinho, vai. Depois dessa cagada de ateu não-praticante, é o mínimo que você pode fazer.

No dia seguinte, tenho um pesadelo com uma amiga que não falo há dois anos. Entro no msn, e converso com um conhecido, espírita, que segundo uma amiga, “não é profeta, apenas dá uns toques”. Ele começa com a frase: “Você está insatisfeita com algo?”. Para resumir a história, ele disse que eu tinha problemas não resolvidos com uma pessoa. “É família? Amigo?”. “Não é família, é alguém com que você não fala há uns dois anos”. “É uma amiga, né?”. “Essa mesmo”, ele responde.

Bem, eu nem perguntei se eu já estava imaginando uma pessoa específica na minha mente, mas tudo bem. Resolvo falar com ela, apesar de não saber quantos dados forneci ao garoto durante a conversa, para ele apenas apenas concordar afirmativamente, e eu me espantar. Posso ter sido levada a um caminho, dado brechas do tipo “ele é alto, cabelo hastafari, um olho azul e outro preto e tem uma cicatriz na cara?”, e a pessoa concordado. Mas após a conversa, resta a dúvida do que foi instigado e do que foi espontâneo.

Sempre observo conversas típicas brasileiras, realmente só devem acontecer aqui.

- Tô com umas zique-ziras.

- Toma uma banho de rosas, vou te ensinar o que aprendi lá na Umbanda.

- Eu ein.

- Que nada mulher, Candomblé é que não pode. Umbanda é espírita.

- Ah, tá. (Até hoje não entendi a diferença entre as duas).

- E essa medalhinha de Nossa Senhora? Você não disse que era ateu?

- A minha vó que me deu. Tenho que usar, tadinha dela. Fora que ela benzeu lá em Aparecida, não custa eu usar, né.

- Ah, tá. (Fim da segunda discussão).

(Saindo da missa)

- Ando com umas dores, e esses remédios não resolvem nada. Não sei mais o que faço, já rezei tanto.

- Vai lá no médico espírita, ele é tiro e queda.

- Mas se o padre souber ele não vai achar ruim?

- Que nada, espiritísmo é filosofia de vida, fazer o bem, fora que eu vou num centro kardecista, não são esses outros, não.

- Então vamos lá na quinta-feira ?

- Hum, quinta não dá. Já combinei de ir com a minha vizinha, a dona Tekiro, lá no Seicho-No-Ie.

- Ah, tá. (novamente).

Acredito que irei seguir com dúvidas pelo resto da vida, mas talvez me encontre em alguma religião, pois no fundo, apesar desse negócio de temer me incomodar, eu desejo ter fé para acalmar as questões da minha personalidade pós-moderna-perdida-totalmente. Só queria crer sem medo, aceditar mesmo, de forma totalmente natural. E acreditar no poder de ação das pessoas não é ter fé?. Só sei de uma coisa: os slogans da campanha ateísta são todos em caixa alta, GOD. Eles poderiam ter colocado a frase em caixa baixa obedecendo apenas as regras gramaticais, a primeira letra da frase em maiúscula. É respeito pelos religiosos ou é não dar margem ao tal temor?.

terça-feira, 28 de outubro de 2008

A válvula de escape

Ao sair do trabalho num sábado à tarde, a única coisa que se espera é um ônibus vazio e tranquilo. Que cada pessoa esteja cansada e com seu respectivo fone do mp3 no ouvido, sem dirigir palavras ou olhares. Mas no fundo, sempre existem aquelas situações que despertam o espírito coletivo do ser humano, a necessidade real de trocar experiências e conhecer outros semelhantes.

Talvez não tão semelhantes, como o funkeiro e sua namorada, sentados no assento da frente do ônibus. Mas, notando-se bem, eles compartilham uma indumentária comum a você: a camisa do Santos. O boné chamativo do rapaz e o cabelo oxigenado e brincos exagerados da garota podem te causar estranheza, mas as camisetas sagradas te ligam emocionalmente de imediato ao casal.

Quando você percebe, a magia da adoração esportiva faz seu efeito. Os fones de ouvido não estão mais no local indicado, apenas descansam sobre a bolsa. Se fosse outro dia qualquer, não existiria conversa alguma.

-Ei, vai ter jogo do Santos hoje?

-Vai sim moça, contra o Atlético Paranaense. É hoje que a gente ganha pra ficar tranquilo. É vai ou raxa. Você é santista?

-Sou sim. Tô meio por fora dos jogos. Tá com chance de ser rebaixado, né?

-Vira essa boca pra lá. A gente ganha fácil deles. Por que você não vai?

-Ah, sei lá, acabei de sair do trabalho.

E a incerteza se torna passageira. O ponto que você pretendia descer passa, e o novo destino está traçado: estádio Urbano Caldeira, a querida Vila para os mais íntimos. O casal não é mais estranho a você, e aquele ponto em comum passa a definir o valor da amizade.

Chegando lá, a sorte é aliada: ingressos de graça às mulheres que entrarem antes das cinco da tarde. A fome bate, o corpo pede banho e descanso, mas nada mais importa, apenas ver o Peixe longe da zona de rebaixamento.

Dentro do estádio você acaba se separando do casal, mas logo se sente à vontade com toda aquela família. Estádio lotado, cantando em coro, te acolhendo. Você pede um celular emprestado a uma família, a “minha bateria acabou”, e o chefe do grupo se desprende sem medo do aparelho, pois está prestando atenção no lance que pode ser um...Gooooool! É gol do Santos, e em apenas dois minutos e trinta de jogo – segundo um adolescente ao seu lado. É impressionante como ele conseguiu contar o tempo, quando o juiz deu o sinal, ele e o amigo iniciaram uma reza interminável, com beijos em medalhas, gestos e sinais exóticos que só têm a afirmar o sincretismo religioso brasileiro.

A sensação desse momento, da bola entrar na rede, é indescritível. Quando o coro grita a palavra entalada no peito, a multidão se levanta, e você, no meio dela, se sente integrante daquela grandiosidade. Pode soltar toda a selvageria, o caos, o estresse dentro de você. Grita Santos, mas aquela palavra não significa mais um time, é emoção. É um momento anestésico, como o amor, que ocasiona aquele mal-estar na barriga, liberando um arrepio no corpo.

Na verdade, só o fato de você estar abraçando estranhos depois do gol, e se sentir sem graça depois que o instante passa, demonstra a carga de energias que um jogo de futebol acarreta. Os noventa minutos liberam a necessidade de comunicação real e espontânea guardada na semana metódica de trabalho, pois existe algo mais verdadeiro do que xingar o juiz e cantar o hino com um bando de desconhecidos?

O jogo acaba, quatro a zero para o time do coração, melhor do que o esperado. Quer dizer, já esperava, com o peixe é sempre assim, né. Talvez daqui a algumas horas, com o ânimo tranqüilo e mais racional, você seja mais realista. A torcida vai embora, esgotada, saindo do estádio numa dança desorganizada, que não iguala o sincronismo da ôla e do olé entoados no decorrer da partida.

Os homens vão se transformando, as camisas são tiradas, e o sinal que a semana burocrática vai começar desanima. Na volta para casa, o ônibus cheio irrita alguns rapazes que beberam umas a mais, e o senhor com as duas filhas não está com paciência para agüentar marmanjo, ainda mais depois de duas horas em pé na Vila Belmiro. Ninguém é mais íntimo, um só. Os indivíduos com fone de ouvido voltam a surgir, como também os olhares desviados e incomunicáveis. A segunda-feira já chegou.



sábado, 12 de abril de 2008

Sobre dinâmicas, estereótipos e julgamentos

Com a inteção de participar do projeto Oficinas Querô, lá fui eu ao Sesc de Santos no primeiro dos três dias do processo de seleção. Era mais uma no mar de gente que disputava uma das vagas do projeto. O Querô é voltado para jovens de regiões periféricas de Santos, São Vicente e Guarujá, e oferece uma oficina de cinema.


Eu não moro em região periférica, mas como o máximo que tenho no bolso são dez (centavos), achei que tinha uma chance. E como no site do Querô não havia nada que especificasse o perfil dos interessados, eu, esperançosamente, acreditei que não era mais necessário morar em área periférica.


Chegando lá, quando avistei toda aquela gente, desanimei. Não pelo grande número de pessoas, mas porque imaginava que a seleção seria de forma individual, por uma conversa, entrevista. Mas não, era claro que estava por vir uma dinâmica de grupo. Horas como boba alegre com outros bobos alegres, e todo mundo querendo se destacar da manada sem saber ao certo de que forma.


Logo de cara vi que a coisa não ia dar certo. Quando entrei na sala, que não possuia o número de cadeiras sufucientes para o de pessoas, me vi sentando no chão, com perninha de índio, e pior: com aquela calça alá insert coins. Eu poderia tentar arrumá-la que as moedinhas imaginárias continuariam a cair, pois agora faço parte da seleta associação dos semi-gordos.


Mas quando eu olho, um fio de esperança: uma única cadeira vaga, e que nenhum dos jovens ali, sentados no chão acarpetado, pareciam querer ocupar. Após descansar as pernas por alguns segundos, acho que três mais precisamente, uma garota ao meu lado, de longos cabelos lisos, óculos retangulares pretos, de pernas cruzadas que davam vista para o seu all star, desferiu palavras num ar superior pseudo-intelectual, o que não combinava com a sua face doce e angelical.


“Já tem uma pessoa aí, ela só foi resolver algo”. Eu ainda tentei dialogar, falando, “será que ela volta, bom, vou ficar por aqui enquanto ela não vem”. Mas a garota não pareceu dar muita bola, pois, no meio da minha frase já tinha virado o rosto para falar com outra pessoa. E após poucos minutos, mais precisamente dois, eu vi uma garota olhando diretamente para mim, quer dizer, ela na verdade estava flertando com a cadeira. E logo a pseudo-intelectual ao meu lado deu nova atenção, dizendo quase aflita que a dona do lugar havia chegado. De súbito resmunguei para mim mesma: “o que essa idiota pensa que tá fazendo, acha que sendo uma super guardadora de lugares justiceira vai conseguir uma vaga?. A dinâmica de grupo ainda não começou, não estão observando seus modos lisonjeiros não!”.


Lá fui eu sentar no chão, de cofre para fora. E comecei a olhar cada figura ao meu redor, pensando como foram parar ali. Haviam muitos que claramente não eram de área periférica, como eu, a pseudo-intelectual e uma outra garota de sorriso metálico. Ela vestia shorts, blusinha de marca, brincos de argola e aquela sandália-chinelo de Jesus Cristo que toda santista que se preze, e que passeia no Gonzaga, possui. Aliás, eram poucos (dentro de estereótipos) que tinham cara de que moravam em áreas carentes. Cheguei à duas conclusões: ou tentava parar de pensar de modo estereotipado, ou eu poderia mesmo acreditar que os critérios de seleção haviam mudado.


E começou a tal dinâmica. Cada um teve que se apresentar, falar nome, uma palavra que te defina e dizer o que esperava das Oficinas. Quando chegou o momento de cada um falar, eu ainda não sabia como me definir em uma palavra. O problema maior era que ela tinha que começar com a mesma inicial do meu nome, a letra m. A única coisa coerente que me vinha à cabeça era merda. Apesar de ter mais de 50 jovens naquela sala, a fila de apresentações já tinha começado, estava chegando na minha vez e a tal da merda não saía – da minha cabeça - de jeito nenhum.


Enquanto isso, as palavras clichês dos outros candidatos soavam com a maior naturalidade possível, de eu sou Jéssica e justa, à eu sou Débora doce e delicada. Existiam também os Otávios organizados, e os Silvios solidários, claro. Alguém com m disse que era metódico, mas além de ficar feio copiar a resposta dos outros, algo que não sou é metódica. Quando chegou na minha vez, a coisa mais estúpida veio em mente: mente. Mariana e mente. “Ahn? Como?”, me perguntou a coodenadora do projeto. “Mente”, eu disse, “mas não de mentir, mas de mente, pensar mesmo”. Ahan. Colou e muito, agora ela me escolhe, porque pensar é algo diferenciado que nenhum ser humano é capaz de fazer. O pior foi a piadinha de dizer que não me referia à ser mentirosa. Ninguém riu, a não ser alguns seres que não eram Silvios, mas realmente solidários.



E começaram as dinâmicas. Uma mais constrangedora que a outra. Eu tentava fingir gostar, estar integrada, mas aquilo não fazia nenhum sentido. A coisa se agravou quando todos tiveram que improvisar cenas a partir de uma palavra dita pela simpática e empolgada monitora. Apesar dos 60 jovens terem sido dividos em quatro grupos, ninguém chegava a um acordo. No meu caso, os quinze do grupo queriam falar ao mesmo tempo, chamar mais atenção. Ao invés de fazerem uma cena conversando, um gritava mais que o outro, e chegavam outros criando cenas paralelas, o que tornava a coisa totalmente desconexa. Quando vi, também entrei na gritaria. Ao final, a monitora repetia que todos não precisavam participar de todas as cenas, e que um tinha que deixar o outro falar para ser ouvido. Mas quem disse que adiantou?.


Apesar de todos quererem chamar atenção, havia um garoto, que parecia ter seus 16 anos, que se destacava naturalmente. Era o único jovem de camisa e calça sociais, gravata, sapatos e cinto combinando. Óculos preto quadrado, cabelos lisos, meticulosamente pentados para trás, brilhantes de gel. Mesmo não parecendo real, mas de um desenho, o garoto se comportava naturalmente, como se não existisse nada de diferente nele. Na brincadeira de criar cenas com uma palavra, não levantou a voz nenhuma vez, e criava histórias coerentes tentando não deixar que começassem os berreiros. Pelas suas idéias, notava-se o típico gosto por Senhor dos Anéis e filme mudo iraniano. Vaga garantida, pensei. Ele não tinha cara de rico, mas de quem conquista os objetivos com o próprio esforço.


Enquanto observava o garoto e sua tentativa de organizar os colegas, começei a ficar inquieta com a situação. Impaciente, resolvo fazer algum comentário com uma moça ao meu lado, pois observar aquilo era um tédio só. A garota, de primeira, parecia ter seus 19 anos, bonita, alta e com um olhar sério para o grupo que participava da dinâmica. Era negra e seus cabelos compridos eram entrançados. Quando puxei papo, não deu muita bola e respondeu séria com monossílabas. Outra com ar intelectual, que pensa ser cada um por sí, concluí.


Ao final das dinâmicas, perguntaram o que os participantes acharam. E as respostas idiotas seguiram – se bem que não sei o que seria uma boa resposta neste caso. “Foi ótima para fazer amigos”, “me soltei”, e por aí segue. Quer dizer, seguir não segue, porque os mais desinibidos que comentaram simplesmente repetiam o que o outro havia acabado de falar, mas tentavam parecer mais cultos. Do tipo, “do alto de minha sabedoria, foi bom para fazer amigos”. “Bom, mas além disso, é bom para realizar novas amizades”. “Não gente, indiscutivelmente, isso aumenta o meu círculo de conhecidos, e é bom conhecer novas pessoas, fazer amizade” emendou o mais audacioso.


Quando todos terminaram de fazer seus pertinentes comentários, a coordenadora deixou claro que a dinâmica não iria definir os escolhidos. Por isso, não importava se você foi mais tímido ou desinibido. Se imitou melhor uma samambaia ou gritou mais. A partir daquele dia, dinâmicas de grupo perderam mais sentido ainda para mim.


Depois de me desgatar fisicamente fazendo uma palmeira e uma motorista de ônibus, ainda tive que pegar uma sinopse, resumí-la e preencher uma lista das coisas que são necessárias para produzir um filme. Os organizadores da seleção explicaram superficialmente os itens da ficha, pois queriam testar a criatividade e o conhecimento dos candidatos. Mal começo a resumir a sinopse, a menina ao meu lado me pergunta como responder a ficha. Eu explico sem dar muita atenção, pois o tempo reservado a essa atividade é curta, e é a última do dia. Mas a garota não pára, e apesar de estar em meu momento egoísta, noto que ela está aflita.


Então olho para ela, e percebo que é a mesma moça que estava sentada ao meu lado e me respondido com monossílabas. Vejo sua ficha preenchida de forma vaga. Ela está tão perdida que me pergunta como se chamam aqueles lugares que vendem bebidas, vinhos. Ela não consegue nem formular a pergunta. Eu falo para ela, “supermercado, não?”. E percebo que não é só nervoso, é porque ela não sabe mesmo. Não tem 19 anos, como pensei, devia ter uns quinze e estava sem um dos dentes da frente. Não abria muito a boca, e colocava a mão na frente, parecendo querer esconder.


Me perguntou onde eu morava, e eu me senti sem graça e não respondi direito. Ela ainda ficou meio perdida, mas eu covardemente terminei minha atividade sem dar-lhe muita atenção. Quando eu estava para sair, uma das organizadoras chamou seis nomes (incluindo o meu) dos 60 presentes e mandou que estes não fossem embora. Haviam perdido um exercício que nós entregamos no começo do dia. Quando foram procurar novamente as folhas com os exercícios, encontraram quatro, e um garoto admitiu que não havia feito. A folha que estava faltando era de quem? A minha. Eu teria que refazer e mandar por e-mail. Paciência. Depois que ouvi a coordenadora dizer que universitários, mesmo com bolsa de estudos, não tinham chance, já desisti da vaga. Tudo bem que a coordenadora poderia ter falado isso desde o começo, e facilitado a vida de muitos ali, já que ela só foi confirmar a questão de morar em região periférica no final do dia. Mas vi que eu realmente já tive a minha oportunidade. Só espero que a minha vizinha de cadeira tenha conseguido a vaga.

terça-feira, 5 de fevereiro de 2008

Dias de Carnaval


Sábado de Carnaval, e enquanto eu escuto lá fora os fogos que algum desavisado que não sabe que o Ano Novo já passou solta, ouço Ivete Sangalo. Nada mais clichê do que ouví-la. E no meu caso, serve como remédio para o sábado à noite furado. Eu poderia estar na rua, levando bexigada e spray na cara. Ouvindo as graças que as pessoas bêbadas se permitem falar. E suportando os paulistas (é, eu sei que o certo é paulistano, mas o modo errado soa bem mais como palavrão, além de permitir que eu inclua não só os cidadãos da Capital). Mas a dúvida paira no ar.

É mais clichê ainda reclamar dos paulistas. E falar como eles acham que podem fazer tudo e mais um pouco nas cidades que estão de férias. E que acreditam que se deve relevar seus excessos diante das vantagens econômicas para a cidade. Mas não dá para evitar.

Usufruir do querido bondinho - ou trenzinho para os turistas - para me deslocar nesse feriado é quase impossível. Além dos indivíduos que jogam todos os materias líquidos e sólidos - e quem sabe um dia até gasosos - contra o ônibus, há sempre a caravana da alegria na parte de dentro. É aquele grupo desafinado (seja de familiares ou jovens amigos bêbados) que não percebe que o suposto coral não precisa gritar - principalmente no ouvido do passageiro da frente – para ser plenamente realizado musicalmente.

Apesar de estar tranquila por saber que não terei de enfrentar os animadinhos na rua, bate um arrependimento. Lembro-me do dia anterior, em que saí com amigos para um roteiro alternativo ao Carnaval. Uma noite com bandas de hardcore, ou algo do tipo. A maioria do público que prestigia o evento está ali para assistir a apresentação de um grupo específico. Ou melhor, banda (grupo é coisa de pagodeiro). Nos shows das outras bandas, há uma pessoa ali, outra aqui. Na última apresentação da noite, o local fica quase que repleto. Pelos meus conhecimentos, e comentários maldosos de amigos, o vocalista é uma mistura de um filme chamado corvo com um japonês e um italiano.

As bandas são boas, e um dos bateristas literalmente se acaba no seu instrumento. Impressionante. Na banda do baterista ligado no duzentos e vinte, um dos guitarristas faz um backing vocal dos infernos. Mas apesar de gostar, penso com meus botões: será que ninguém ali dentro está pensando em axé, Bahia e Chiclete com Banana? Será que alguém está com a frase: Bebeu água! Nããão! Tá com sede? Tô! Olha, olha, água minera... na cabeça? Aposto que depois de beberem umas cervejas, metade daquela tribo já teve um dia de cantar música perniciosa bahiana e cair na folia fingindo que é normal, e que isso faz parte de fim de noite. É moda ser brega, e aceitar o brega. E é Carnaval. Sinônimo de “vale tudo”.

E após analisar prós e contras, decido não quebrar o ritual anual de ir a um clube “cair na folia”. Uma associação convida todos os anos a mesma banda de carnaval para animar os foliões associados e os não-associados (lê-se povão, incluindo-me). O grupo possui vasto repertório de pop-axé-marchinha-sambismo, mas que com muita dificuldade recebe inserções de novas canções a cada ano. Apesar da música mais recente ser A pipa do vovô não sobe mais, divirto-me.

É gostoso observar as figuras que estão ali numa plena e pura felicidade, além de sentir o sangue olodumzeiro que surge pulsante nas veias com as batidas do atabaque. Meninos dançam juntos e despreocupados, parecendo esquecer do objetivo maior de pegar garotas e mostrar a masculinidade ao grupo, ou mesmo beber. E mesmo que tenha de enfrentar, enquanto volto a pé para casa, os dez carros que possivelmente vão parar para fazer um comentário desnecessário, eu prefiro sair. Não posso deixar de cantar, como todos os anos, no Carnaval: - Choraaaaaaa, não vou ligar, não vou ligaaaar, chegou a horaaaa ...

domingo, 27 de janeiro de 2008

Um passeio de bicicleta


Itanhaém. A namorada do sol?, a pedra que canta?. Já sei: lugar em que os hippies sempre estão sentados nas calçadas vendendo bijus, seja na temporada ou fora dela. Na primeira vez, você imagina: “Esse cara deve ter muito história para contar, muita estrada”. Na segunda: “Bom, ele deve gostar mesmo da cidade”. Na terceira: “Ele nasceu aqui e nunca saiu destes limites, a não ser para comprar matéria prima na 25 de março”.


Que tal uma volta de bicicleta?. Pego a bike e sigo pela Avenida Rui Barbosa. Após dez, quinze minutos, dou de encontro com a praça. Contorno e vejo os velhinhos que, faça chuva ou faça sol, batem ponto para jogar dominó. Antes da última reforma na praça central, o quiosque do ponto de táxi era a casa de jogatina da terceira idade itanhaense. Agora os velhinhos já estão instalados em novo local: um coreto bem no meio do calçadão - e que demorou uns 70 meses para ser concluído.


A praça Narciso de Andrade é versátil. É também ponto de encontro da “noitada” jovem itanhaense. Lembro-me dos incontáveis finais de semana que ali passei e continuo a passar. Todo mundo reclama, discute sobre como nunca há nenhuma opção de lazer na Cidade, mas ninguém larga o hábito de conversar na pracinha com as mesmas pessoas, ver as mesmas pessoas – porque você conhece todo mundo, mesmo que seja de vista -, e reclamar das mesmas coisas. Não é um hábito, é realmente uma tradição, costume. Por mais que abra uma balada nova (e feche depois de dois meses) todo mundo, ou melhor, toda Itanhaém dá uma passadinha ali, na pracinha.


Desço a ladeira, e lá está o artista que agora, nos finais de ano, esculpe em areia um presépio em tamanho natural. Dou uma olhada e sigo em frente. Um pouco antes da ponte, penso por que lado seguir. Vou pelo caminho maior, da Praia do Sonho, mas mais seguro e com uma vista linda, ou corto pelo morro? Fico com o morro.


Começo a pedalar com força, em pé na bike, para conseguir subir a ponte sem sair da bicicleta. Quando alcanço o meio, a vista vale a pena. Vejo o rio Itanhaém, a denominada “Amazônia Paulista” dos catálogos puxa-saco de turismo. Observo a bonita sinuosidade do rio, o manguezal no seu entorno. Pais e filhos pescam na passagem construída paralelamente à ponte, onde fica a linha férrea inutilizada. A descida da ponte facilita a minha vida. Sento na bicicleta e só espero a gravidade fazer a sua parte. Logo ao final da linha férrea um grande aviso com algo do tipo: “Proibido pescar neste local, lei número ...”.


Logo após a descida, começa um enorme aclive que me obriga a sair da bicicleta. Nesta faixa de pista o morro fica de uma lado e a vista para o manguezal do outro. Com a umidade dos dois lados, nos dias de calor dá para sentir um mormaço gostoso, combinado com um cheiro de terra molhada dos dias de chuva. Sigo em direção ao bairro Belas Artes. B.A. para os mais íntimos.


Corto pela rua da feira e, de repente, ouço música. É a banda marcial de Itanhaém. Entro no local de ensaios, sento-me e escuto. Pessoas de idade, comportamento e estilos diferentes. A garotada da percussão é super versátil, troca de instrumento a cada música. Todos sabem tocar tudo. A banda possui integrantes que estão lá há mais de 20 anos. E também alguns que estão há meses, como um garotinho de nove anos que já manda muito bem na percussão. Gordinhos, magrinhos, introvertidos, extrovertidos.


Noto uma mulher sentada, com um braço engessado, a quem todos cumprimentam. Ela não é da banda, mas há um ano reserva seu sábado à noite para assistir os ensaios. A professora de geografia, que se mudou de Guarulhos para Itanhaém, sabe todo o repertório. Me explica tudo e fala das pessoas dali como se fossem seus filhos. Ela gostaria de participar da banda, mas como já fez duas cirurgias nos braços pelos anos e anos escrevendo na lousa, só pode assistir e esperar. Ela levou um menino, vizinho seu, para tocar na banda. Apesar de morar na Cidade desde que nasceu, o garoto nunca tinha ouvido falar do grupo de música. Ele adora estar ali e é muito aplicado. A professora conta com orgulho como o jovem está se saindo bem.


Pessoas tão diferentes por fora, mas com um interesse em comum: fazer boa música. Nos intervalos dos ensaios, cada um comporta-se de maneira diferente. Uns conversam, outros brincam ou concentram-se. Mas no momento certo, todos parecem um só, e levam a coisa muito à sério.


Tanta gente diferente, e às vezes, apesar de não saber porquê, me sinto muito incluída nessa Cidade. Posso ver os mesmos lugares sempre, mas não me canso. Olho a Praia dos Sonhos, vou no Savoy, no Suarão, no Belas Artes ou no Gaivota e há sempre algo novo a descobrir. E algo velho a me apegar. Quando estou em Itanhaém, sinto vontade de reclamar, mas ai de quem não mora lá dizer alguma coisa. É, eu adoro a minha cidade.