terça-feira, 28 de outubro de 2008

A válvula de escape

Ao sair do trabalho num sábado à tarde, a única coisa que se espera é um ônibus vazio e tranquilo. Que cada pessoa esteja cansada e com seu respectivo fone do mp3 no ouvido, sem dirigir palavras ou olhares. Mas no fundo, sempre existem aquelas situações que despertam o espírito coletivo do ser humano, a necessidade real de trocar experiências e conhecer outros semelhantes.

Talvez não tão semelhantes, como o funkeiro e sua namorada, sentados no assento da frente do ônibus. Mas, notando-se bem, eles compartilham uma indumentária comum a você: a camisa do Santos. O boné chamativo do rapaz e o cabelo oxigenado e brincos exagerados da garota podem te causar estranheza, mas as camisetas sagradas te ligam emocionalmente de imediato ao casal.

Quando você percebe, a magia da adoração esportiva faz seu efeito. Os fones de ouvido não estão mais no local indicado, apenas descansam sobre a bolsa. Se fosse outro dia qualquer, não existiria conversa alguma.

-Ei, vai ter jogo do Santos hoje?

-Vai sim moça, contra o Atlético Paranaense. É hoje que a gente ganha pra ficar tranquilo. É vai ou raxa. Você é santista?

-Sou sim. Tô meio por fora dos jogos. Tá com chance de ser rebaixado, né?

-Vira essa boca pra lá. A gente ganha fácil deles. Por que você não vai?

-Ah, sei lá, acabei de sair do trabalho.

E a incerteza se torna passageira. O ponto que você pretendia descer passa, e o novo destino está traçado: estádio Urbano Caldeira, a querida Vila para os mais íntimos. O casal não é mais estranho a você, e aquele ponto em comum passa a definir o valor da amizade.

Chegando lá, a sorte é aliada: ingressos de graça às mulheres que entrarem antes das cinco da tarde. A fome bate, o corpo pede banho e descanso, mas nada mais importa, apenas ver o Peixe longe da zona de rebaixamento.

Dentro do estádio você acaba se separando do casal, mas logo se sente à vontade com toda aquela família. Estádio lotado, cantando em coro, te acolhendo. Você pede um celular emprestado a uma família, a “minha bateria acabou”, e o chefe do grupo se desprende sem medo do aparelho, pois está prestando atenção no lance que pode ser um...Gooooool! É gol do Santos, e em apenas dois minutos e trinta de jogo – segundo um adolescente ao seu lado. É impressionante como ele conseguiu contar o tempo, quando o juiz deu o sinal, ele e o amigo iniciaram uma reza interminável, com beijos em medalhas, gestos e sinais exóticos que só têm a afirmar o sincretismo religioso brasileiro.

A sensação desse momento, da bola entrar na rede, é indescritível. Quando o coro grita a palavra entalada no peito, a multidão se levanta, e você, no meio dela, se sente integrante daquela grandiosidade. Pode soltar toda a selvageria, o caos, o estresse dentro de você. Grita Santos, mas aquela palavra não significa mais um time, é emoção. É um momento anestésico, como o amor, que ocasiona aquele mal-estar na barriga, liberando um arrepio no corpo.

Na verdade, só o fato de você estar abraçando estranhos depois do gol, e se sentir sem graça depois que o instante passa, demonstra a carga de energias que um jogo de futebol acarreta. Os noventa minutos liberam a necessidade de comunicação real e espontânea guardada na semana metódica de trabalho, pois existe algo mais verdadeiro do que xingar o juiz e cantar o hino com um bando de desconhecidos?

O jogo acaba, quatro a zero para o time do coração, melhor do que o esperado. Quer dizer, já esperava, com o peixe é sempre assim, né. Talvez daqui a algumas horas, com o ânimo tranqüilo e mais racional, você seja mais realista. A torcida vai embora, esgotada, saindo do estádio numa dança desorganizada, que não iguala o sincronismo da ôla e do olé entoados no decorrer da partida.

Os homens vão se transformando, as camisas são tiradas, e o sinal que a semana burocrática vai começar desanima. Na volta para casa, o ônibus cheio irrita alguns rapazes que beberam umas a mais, e o senhor com as duas filhas não está com paciência para agüentar marmanjo, ainda mais depois de duas horas em pé na Vila Belmiro. Ninguém é mais íntimo, um só. Os indivíduos com fone de ouvido voltam a surgir, como também os olhares desviados e incomunicáveis. A segunda-feira já chegou.



4 comentários:

Anônimo disse...

Finalmente de volta! Gostei do post ... confesso que como observadora não me agrada nada esses torcedores todo domingo decendo em procissão a rua de casa... mas a partir do seu texto da pra entender melhor a emoção que envolve todo o ritual ... futebol é o ópio do povo brasileiro ... mas quem não precisa do seu?

Ah.. vc disse num dos comentários lá no meu blog que aquele video q coloquei lembra um livro né? Por acaso vc sabe o nome? ... é um trecho de Minha Vida sem Mim, bélissimo filme que é baseado mesmo em um livro, mas eu não consegui descobrir qual...

Mas e aí ... tudo bem?
Eu? ... desvairada! socorro!!

Beijos,

Sussu

Anônimo disse...

É uma selvagem essa menina, sem dúvida. Se agarra a qualquer estranho com uma camisa alvinegra, já compartilha celular...

"Camisetas sagradas", onde? Pega uma delas depois de 90 minutos de jogo pra ver só o que é sagrado.

E aquele mal-estar na barriga, já tem medicação pra isso.

Bem, pelo menos você não foi pé-frio. Mas domingo o jogo é contra o verdão, então vai se conformando.

Anônimo disse...

eu sei ... eu me chamei :)

Raquel Gomes disse...

Meu Deos, Mariana! Como tu num conta?
Primeiro que ficou se esfregando no mastro do divino lá na Vila. E segundo que tu escreve bem desse jeito???
Ai ai ai
Beeeeeeeeijoooooooos
Parabéns!!!