quinta-feira, 29 de julho de 2010

Chama a Rrita!

        O salão de chão amadeirado brilha, refletindo grandes lustres de cinderela no teto. Ao fundo ouço algo conhecido, “Ilari Ilariê”. Não, mas a letra não parece a mesma. Não é a rainha dos baixinhos que canta, e seu sotaque soa diferente. Enquanto dezenas de pessoas (a maioria velhinhos) observam – com desejo contido - os pares a dançar no meio do salão, os casais se balançam despretenciosamente, em um estilo que agrega a moda caipira com a técnica “baile de terceira idade”.
        Mas algo não está certo. Após uma desconhecida Xuxa cantar, sequenciada por uma estranha versão de “Moreninha Linda” (com direito a arranjo de metais), a banda responsável pelas bizarras versões emenda uma, se possível, mais peculiar canção para meus ouvidos, a denomidada “Laurendinha”. Você talvez já tenha ouvido o tão aclamado refrão em que a dita cuja é chamada a comparecer à janela. Sim, eu estou a ouvir Dulce Pontes. E sim, pasmem, todos continuam a dançar no mesmo passo de “Tonico e Tinoco” da melhor idade. Ops, dançando.
        However, a peculiaridade do ambiente não para aí. Ao fundo do palco elevado, atrás da banda, observo duas grandes bandeiras, e poderia dizer, de acordo com o repertório da noite, que elas seriam as do Brasil e de Portugal. Eu poderia dizer que aquela era “uma festa portuguesa, com cerrrteza!”, mas ninguém fala português. Apesar dos costumeiros bigodes e barrigas que me lembram o Seu Manuel da padaria, eles estão a falar inglês. They are all Americans, baby. A bandeira ao lado da portuguesa no palco é a dos Yankees e eu estou na Festa do Espírito Santo da comunidade portuguesa em Freemont, Alameda County, California.
        Para minha surpresa, saí de minha Cidade, Itanhaém, com sua Festa do Divino que tive que pesquisar incessamente para um TCC, e a reencontro nos Estados Unidos sem trégua para sentir saudades. Estão ali, apesar de mudadas e mais glamourizadas, algumas figuras e cerimônias clichês da Festa: a simbolização da entrega de comida à comunidade, a Rainha Isabel... De repente ouço o idioma-original – o “mestre de cerimônias” da Festa começa a chamar algumas pessoas a cruzarem o salão: “Manuel and Aparecida Ferreira, come here, please! Uma salva de palmas!!”. É, ele está a misturar as línguas, mas na hora alguém me diz que isso é perfeitamente normal. “Muitas vezes nem a sentença sai inteira em uma língua”. Quer dizer, frase.
        Eu tomo a cerveja “morna” estadounidense servida pelo senhor português-americano que, para seguir as criteriosas regras sobre bebidas e jovens na terra do Tio Sam, tenta checar meu passaporte – sem entender, afinal, se sou maior de 21 anos. Ah, mas festa portuguesa é praticamente brasileira né. Ele me entrega a bebida sem a certeza de minha maioridade.
       Talvez pela bebida, presencio uma cena inusitada: alguns pares dançam uma quadrilha. Ao menos é o que parece. Não entendo o que um homem de um dos casais no círculo ao centro do salão fala, mas ele grita comandos: talvez seja um “Olha a chuva” ou “A ponte caiu”, porque a cada vez que ele fala as pessoas mudam de direção ou de passos. Mas ele fala português. Vai entender. Os jovens casais que não falam uma palavra de português, muitas vezes filhos ou netos de imigrantes, conseguem entender os comandos e dançam alegres os estranhos passos da “Chamarrita”.
- Chamarita?
- Não, ChaaamaaRrrita!
- Ah, você quer dizer que é “chamar alguém, nesse caso uma mulher chamada Rita”. Ah sim. É difícil entender o português-de-Portugal-de-americano-filho-de-imigrante.
- É um tipo de dança açoriana. Aqui todo mundo dança, mesmo não sendo dos Açores.
        O que a saudade de algo familiar não faz com alguém, né? Os imigrantes portugueses e seus filhos mantêm grupos folclóricos com diversas atividades, sendo algumas realizadas com disposição aqui, nos Estados Unidos – enquanto a maioria dos jovens de Portugal morreriam de vergonha de participar, é o que me dizem. “O que são os caminhos da cultura, ein?”, minha pseudo-consciência de antropóloga conclui.
        Ao final, para não dizerem que eles não são americanos, a banda toca algumas canções tipicamente americanas. Um clássico rock’n roll, um pop-rock mela-cueca e um country - neste momento, um sentimento mútuo e súbito percorre o salão. Todos começam a se posicionar e ao estilo “aula em academia de Ginástica”, sincronizam passos “de cowboy?”. “Você nunca dançou electric slide, nunca ouviu falar?”, questionam-me, com espanto.
        Posiciono-me embaraçada no meio dos americanos e americanos-portugueses, mas quando lembro que um daqueles típicos gringos metaleiros – com camisa do Motorhead, barba e cabelos compridos loiro-ruivos e cara de mau – havia dançado, há pouco, sem nenhuma vergonha de ser feliz, a música de meus conterrâneos Tunico e Tinoco, fico à vontade. Após as aulas de Electric Slide, não acredito no que ouço: “A banda luso-americana toca Safe and Sound, do Rebelution. Eles não são tão populares assim, penso eu. “Nunca pensei que ouviria uma banda de garagem tocar Rebelution. Eles são meio independentes, talvez underground, não é?”. Ah, esqueci, estou na terra desses gringos – e de outros gringos imigrantes. Estou na Califórnia.