terça-feira, 29 de setembro de 2009

TCCs e a hipocrisia intelectualista

Nos últimos meses do ensino médio, quando ainda não estava tão claro na minha cabeça o que eu faria da minha vida dali para frente, a piada de sempre era o meu incontestável destino caiçara. Como dizia às amigas, tornaria-me uma pescadora artesanal, casaria-me com um semelhante, barrigudo, de pés inchados e olhos vermelhos - de pinga matinal, e teria fihos escadinhas, com suas respectivas barrigas de verme e casquinhas de caca de nariz grudadas no braço.

- Josué, meu filho, joga a rede que hoje vai dar peixe! A lua tá cheia! A maré tá boa – essa seria a minha realidade na madrugada da pescaria diária.

O nome do meu filho, que sem tom de brincadeira, gostaria que fosse esse mesmo, sempre era tema de investidas preconceituosas, pois diziam que era um nome de “pedreiro” (desculpe-me a ofensa à classe). Sempre que o assunto na escola era vestibular, a frase acima, destinada a meu possível futuro filho, saía de minha boca. Certo dia, até o professor, ouvindo a brincadeira entre as colegas, sugeriu-me: “Ah Mariana, então porque você não faz engenharia da pesca?”. Ele falou a sério.

Tirando a falta de senso piadístico de meu antigo mestre, certo dia tive que resolver a questão: eu faria jornalismo. As amigas foram entrando também na dança das humanas, uma querendo a filosofia, outra ciências sociais, outra seguir Jeová aonde ele fosse...- a última encaixa-se em humanas?.

Bom, o fato é que cá estou, passaram-se quatro anos voando, e deparo-me com o monstro final: o temido Trabalho de Conclusão de Curso, ou para facilitar, TCC. Com minha falsa modéstia tenho a “brilhante” ideia de produzir uma monografia – mais teoria e pesquisa, tudo a cargo da pessoa mais preguiçosa e enrolona que já conheci: EU mesma. Leituras infindáveis de textos de outros, que servirão como referência, e para, entre uma citação e outra de terceiros, eu comprovar legitimamente que a minha tese é sólida e muito bem embasada.

Taí algo que eu não entendo. Quando você começa a ler estes teóricos, percebe que a essência do pensamento deles é pequena, porque eles também se basearam em terceiros – num círculo interminável que começou lá no Platão e foi parar na minha má e porca monografia sobre jornais e cultura de uma cidadezinha latino-americana sem dinheiro no bolso.



Em uma de minhas leituras, como em todas as outras que fiz no decorrer da faculdade, percebo o tom crítico, algumas vezes direto, outras velado, sobre o nosso modo de vida atual, consumista, mercadológico, desigual, neoliberal (os teóricos adoram essa palavra) etc etc e etcétera. Nessa hora lembro da amiga que faz filosofia, pois o autor começa a dizer mal sobre a área (pelo que entendi, já que esses textos acadêmicos adoram usar sinônimos da idade média para palavras fáceis). O cara fala da desvinculação do pensamento lógico da filosofia da realidade em que vivemos, de como ela interpreta e interroga as questões do mundo a partir de um método próprio em que está “presa”, achando-se dona da razão.

Eu começo a ficar perdida naquilo, pois para mim é tudo discurso (ou seria retórica?). No fim das contas, eu imagino todos os caras que escreveram os livros, e os citados nas obras, sentados em suas bibliotecas imensas, cheias de requinte, com um belo vinho a tira colo. Falando mal do mundo, desse sistema porco capitalista, e usufruindo de todas as suas vantagens(?). Uma das poucas citações que me fazem rir é sobre a antropologia. Um tal de Octavio Paz diz que “a antropologia resulta do remorso europeu a respeito dos ‘primitivos’”. Que a disciplina quer defender os índios, os negros e os primitivos da autodestruição dos europeus, por isso, a única salvação de que a antropologia é capaz é a de livrar os índios da própria antropologia – afinal, ela é um estudo criado por eles mesmos.

Eu largo o livro da mão quando o cara começa a dizer, citando outro, claro, sobre a busca dos círculos intelectuais de uma identidade latino-americana. Que o simples uso da palavra “latino” já fere os princípios, pois o adjetivo “remete para um derivado de uma matriz européia-ocidental”.

- PUTA QUE O PARIU, VAI TOMAR NO CÚ! Cara chato da porra, vai embaçar agora por causa de uma palavra! Então enfia o LATINO na #$&!# ! Diz então que somos CENTRO-SUL-AMERICANOS e chama os americanos de estadunidenses!

Minha avó, assustada, pergunta-me o que aconteceu. Eu começo a conversar com ela, e ela me diz que a teoria é importante, e não sei mais o quê. Eu adoro conversar sobre livros com ela, mas eu estou tão de saco cheio que não consigo engolir seus argumentos. Começo a pensar na minha primeira opção de vida a sério, largar tudo e virar pescadora, pelo menos faria algo totalmente utilitário, o comer para sobreviver, ao invés de ficar nessa lenga-lenga. “O que esses intelectuais precisam é de uma boa vassoura e um tanque para ocuparem suas cabeças, ou vão fazer um roçado e sobreviver do próprio alimento já que a sociedade de consumo é tão ruim assim!”. Na hora em que empolgo-me num debate filosófico-intelectualista com a minha vó, eis que surge o único ser pensante e verdadeiramente realista da casa, MAMÃE:

- O MARIANA, SUA VAGABUNDA, DESCULPA ATRAPALHAR A SUA CONVERSA INTELECTUAL COM A VÓ, MAS VEM ME AJUDAR EM ALGUMA COISA QUE PRESTA. JÁ QUE VOCÊ NÃO FAZ NADA O DIA INTEIRO, LIMPA ESSA GELADEIRA AQUI PRA MIM!

sábado, 22 de agosto de 2009

A Famigerada Cannabis Sativa

Durante os últimos anos, a maconha tem sido presença regular na minha vida. De toda a forma, mesmo sem ter experimentado, ela sempre teve o papel intrigador. Mas como disse a um amigo outro dia, quando ele me chamou para a tal da socialização, às vezes dou uma de Sandy, e ainda não conseguiria fazer algo ilegal. Mas o conceito que eu tinha da tal cannabis vem se transformando com o passar do tempo, em cada contato ou história que eu ouço sobre ela.

Nunca vi tantas matérias sobre o assunto, discussões e causos. Lembro-me das primeiras vezes que ouvi falar, desde as aulinhas do Proerd na escola até alguma história de uma amiga duma amiga, na oitava série. Eu, com a minha natural genética da atrasada, que sempre é a mais certinha e encanada do grupo, nunca teria mesmo conseguido experimentar, ao menos até hoje. É engraçado como a visão de algo vai mudando com o passar dos anos, como a que eu tinha sobre bebidas alcóolicas.

Recordo-me de como enquanto minhas amigas já iniciavam a adolescência bebendo vinho e misturando o “Tang com a Baikal”, eu ainda achava cerveja um mijo alcóolico com a única função de “fazer a social”, e me limitava às batidas. Hoje, posso dizer o quanto é prazeroso chamar aquela querida amiga pra tomar uma breja e trocar uma ideia. Mas não é só isso. Eu realmente passei a gostar da cevada, do sabor, e da sensação de bem-estar depois de alguns copos. Mas lembrar-me de como eu renegava algo que hoje é tão natural é engraçado.

Talvez a maconha seja mais polêmica – além do fato de ser ilegal – pela minha falta de aptidão física e psíquica para ter malandragem. Sempre admirei, e continua a admirar, o charme inegável de alguém que sabe tragar um cigarro, que solta a fumaça para o alto e dá aquele olhar de lado logo depois.

A minha primeira experiência com o cigarro foi na quinta série. Cinco meninas num banheiro de dois por dois, e aquele único e majestoso cigarro na mão da mais rebelde (a mesma que roubava os pirulitos da boca das que ela chamava de “patys frescas”). Ela, é claro, já se dizia expert no negócio, mas quando acendeu o fumo, deu umas engasgadas, o que gerou muitas risadas na roda, e logo protestos de silêncio, já que a inspetora poderia entrar no banheiro a qualquer hora. Enquanto o cigarro passava de mão em mão, eu lembrava-me de todos os ditados morais já ouvidos. E então, quando a garota ao lado passou o tabaco para mim, eu não consegui conter a adrenalina de estar fazendo algo totalmente novo. É claro, eu traguei, engoli a fumaça, e ela nunca mais voltou. De todas as garotas, mesmo que uma desse uma engasgada, tossisse, eu fui a única que não consegui liberar a fumaça para fora. E isso segue até hoje.


Mas é claro, o tal do baseado não é um simples cigarro. Outro dia assisti na tevê uma matéria sobre um traficante paraguaio que traz a maior parte da maconha comercializada no Brasil. Aí vem toda a questão das pobres-criancinhas-na-favela-que-vivem-no-meio-do-tráfico e se envolvem, em como eu estaria contribuindo para a morte de pessoas se utilizasse algo ilegal. Do outro lado, diz-se que a maconha não tem produção massiva em algum país, que as plantações já se espalharam localmente – fora os que plantam em casa por aí.



E diante de toda essa pressão midiática e social, já que sempre aparece alguém para te oferecer um tapinha, eu comecei a ter um gosto musical, sem saber, que me levava à maconha. Uma banda aqui outra ali, e de repente, quando comecei a prestar atenção nas letras, sempre havia menção de alguma weed, sensi, ganja, pot, herb, get stoned, get high, legalize e eu, intrigada com aquela repetição de palavras, fui descobrir, na minha pura inocência, no dicionário, o seu real e bombástico significado.

Mas já era tarde, eu amava as bandas, e não posso mentir que gostar delas fez que com que o meu conceito de “erva do capeta” passase a uma ideia de apenas ser algo para “te dar um barato”. Até porque, não conseguiria ser hipócrita de criticar alguém do meu lado enquanto ouço as músicas dos caras de fora que acham a melhor sensação usar a tal da sensimilla. E quem sou eu para dizer algo, se o cara fica apenas relaxado, enquanto eu, bêbada, sou capaz de encenar situações nada agradáveis para a minha consciência do dia seguinte.

O que não consigo entender é porque a maconha é criminalizada, se existe toda essa onda hippie desde os anos 60, se tanto metido a intelectual usa, se não existe nenhuma comprovação de que ela vicie ou cause algum dano grave como outras drogas ilegais. Talvez ainda faltem manifestações mais claras a favor, um enfrentamento maior de quem usa, como em outras situações de quebra de preconceitos na cultura ocidental. Quer dizer, às vezes vejo alguém comentando sobre maconha, mesmo que esteja trancado dentro de um quarto, mas a pessoa naturalmente abaixa a voz.

Depois de certo tempo, comecei a separar o mundo num AC - DC. Antes da Cannabis, Depois da Cannabis. “Será que fulano fuma?. Ah, esse deve fumar, sim. Esse não”. Ou “Fulano fumava, mas agora parou porque tá trabalhando e lá fazem testes de drogas”. Mas aí o conceito cai, até porque todo mundo sabe que estereótipo não existe, principalmente no caso da maconha. Porque TODO o mundo, sem biotipos ou roupagens, pode ser fumante, já ter fumado, ou simplesmente não lembrar que fumou porque estava bêbado. Se você olhar na rua, olhe bem para aquela garota produzida, porque ela pode fumar, ou até mesmo aquela velhinha sorridente, pode ser que ela fume com o neto.

Afinal, quem sou para falar algo daquele cara que fuma com a mãe, ou daquele amigo firmeza que conta sobre seus problemas com a cocaína, mas que hoje fuma seu baseado toda noite, na boa, para dormir, ou daquela garota que foi fazer um trabalho para a faculdade, e quando foi analisar um filme, uma vez sóbria, outra chapada, teve ideias que agradaram a professora mais quando tinha fumado um?

Chega um certo dia, um certo ponto, que os papéis se invertem. A última, e derradeira, é quando você vira e fala “Vocês vão ficar me discriminando só porque eu não fumo maconha?”. Só sei que olhei para o lado, e o cara gargalhava, um riso solto, leve, gostoso, que me contagiou, como toda risada. Eu ria, mesmo sem ter fumado. Mas ele ria melhor, pois tinha o maior motivo para aquela vocação. É, posso ser do grupo de não-fumantes, mas não sei o dia de amanhã. Enquanto acabo esse post, ouço minha música preferida do último disco do GLASS. O delicioso solo de guitarra antecede o inebriante refrão: “Who’s Got the Weeeeeeeed, I Got the Weeeeeeed”.