Há cerca de três anos eu postei neste blog uma nota intitulada “Por uma Birmânia Livre”. Apesar de ter participado da tal corrente da Internet que pregava apoio à revolução pacifista na Birmânia - também conhecida pelo nome de Mianmar -, eu não tinha a mínima ideia do que estava fazendo. Nunca havia ouvido falar sobre a nação ou lido sobre os problemas sociais e políticos; apenas quis dar uma de cool na condição de pseudo-estudante-de-jornalismo-socialista-comunista. Portando tal codinome eu deveria estar sintonizada com esses tipos de “assunto” que ninguém nunca discutiria numa conversa de bar, só pra exercer minha função de informada – mesmo que muito má e porcamente.
Afinal, ninguém iria me questionar sobre o tal paisíco ao sul da Ásia. O post foi apagado da minha memória até que há algumas semanas atrás, no primeiro dia de aula de ESL de Vocabulários e Expressões, ele me veio à cabeça. Entre os diversos colegas de sala que venho tendo a oportunidade de conhecer, eis que um gordinho, que a mim parecia a perfeita encarnação de Buda, faz a revelação bombástica: ele é birmanês.
A revelação ocorre porque o professor, com seu jeitinho americano à lá Charles Chaplin, decide começar a aula com uma brincadeira: adivinhar o país de origem dos alunos. Após sair-se bem na diferenciação do bloco de muçulmanos, chutando certo entre os colegas do Irã, Iêmen, Omã, Turquia, Marrocos e Paquistão (vacilando apenas na muçulmana que vinha do Sudão), o professor hesita no rosto do birmanês, já que havia esgotado todas as possibilidades asiáticas. O rosto redondo do Buda, que me lembrava a imagem dos povos da Mongólia, tornou-se um desafio. O professor já havia diferenciado os chineses dos sul-coreanos e japoneses, e conseguia discernir com facilidade a diferença entre os colegas do Nepal, Filipinas, Camboja, Vietnã, Tailândia e Laos.
Quando chegou a minha vez, a minha cara latina (?) fez com que ele chutasse Colômbia. Mas voltando ao birmanês, eu fiquei intrigada, e não perdi a oportunidade de perguntar se ele havia ouvido falar da corrente na Internet sobre Mianmar. Ele me respondia tudo com a monossílaba "sim". Ao final, quando eu perguntei o que ele achava do apoio, ele respondeu - num tom de desabafo com leve irritação: “Quem está no Governo não é bom, mas a oposição também não é”. Sem querer testar a paciência do mais novo colega, resolvi deixar para mais tarde as milhares de perguntas que rolavam na minha cabeça, já que nesse meio tempo de convivência com o multiculturalismo americano aprendi que a minha conduta latino-americana não combina, inicialmente, com a reserva oriental e/ou muçulmana.
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Budismo é a religião oficial em Mianmar |
Outra coisa que aprendi é: não compactue com estereótipos. Outro dia, numa conversa com um garoto da Etiópia, descobri que neste país a língua oficial chama-se Amharik (Amárico em português). O idioma é de origem africana porque a Etiópia foi uma das únicas nações africanas que não sofreu colonização europeia. Meu colega etiopiano disse que houve uma curta ocupação italiana, mas o exército nacional conseguiu expulsá-la. No entanto, existem muitos muçulmanos no país, tanto que o “Oi” deles é o “Salam” arábico. Mas todos vivem em perfeita harmonia.
É claro que essa historia não colou de inicio. Se eu comentava a minha conversa sobre a Etiópia com alguém, sempre me respondiam com certeza que “Eles já foram conquistados por outros povos, sim. Se tudo é lindo desse jeito porque toda aquela pobreza? Então porque ele está aqui?”. No entanto, quando eu fui pesquisar sobre a Etiópia, não é que era tudo verdade mesmo?. “Mas e a pobreza?”, pergunto ao etíope Tomas. “Ah, o problema é o Governo. La você só consegue um emprego se estiver envolvido com o partido e concordar com ele”. Bom, ao menos a história de culpar os europeus imperialistas (que eu sempre usava pra irritar a minha avó portuguesa) não vai funcionar na Etiópia.
Mas mesmo assim, porque é que a gente sempre tem que olhar pelo lado problemático?. Tomas não tinha muitos problemas na Etiópia, sua vida era a de um cidadão talvez “classe-média”. É claro que veio aos EUA por oportunidades melhores, e principalmente, por causa de parentes que aqui estão – o que não o difere de qualquer brasileiro que vem para cá. É logico que os problemas existem, o povo sofre com a fome e miséria (como você pode confirmar jogando Etiópia no Google Imagens), mas também se deve olhar por outras perspectivas.
Celebração religiosa na capital da Etiópia, Adis-Abeba (a maior parte da população é cristã, da Igreja Ortodoxa Etíope) |
Olhar por outras perspectivas é o que propõe a escritora nigeriana Chimamanda Adichie, neste brilhante discurso chamado “O perigo de uma única história”. Se você só ouvir um lado da história, ela tende a ser parcial, numa única versão – o que muito ouvi na minha época de pseudo-estudante-de-jornalismo-socialista-comunista. Mas é claro que eu não posso deixar de pensar que esses dois colegas também estão dando suas visões da história, mas eu não acredito também que eles sejam os únicos de seus países na mesma situação – e modo de pensar.
Recentemente fiz um curso de verão em uma grande universidade, onde os estudantes estrangeiros eram ricos, vindos não só da Ásia como também da Europa. Agora, na nova faculdade o cenário é diferente. O curso, semestral, requer um longo tempo de estadia aqui, então os alunos não são meros turistas, mas imigrantes. Alguns tinham uma vida boa em seus países de origem; portanto, possuem condições de bancar um curso na Gringa. Por outro lado, muitos vieram em busca de uma oportunidade melhor e trabalham duro para sobreviver e estudar. No entanto, isso não significa que eles tem de deixar toda a bagagem cultural para trás só para não sustentarem a ideia de que estariam cuspindo no prato que comeram. Como diria Adichie, o estereótipo não precisa ser algo totalmente irreal, mas é uma visão singular e restrita do plano geral.