É fascinante saber que existem tipos tão peculiares no mundo, que se distinguem dos demais humanos de uma forma que faz qualquer um pensar na normalidade da própria vida, pesar tristezas, aventuras e alegrias. Santiago, mordomo argentino que serviu por 30 anos a família Moreira Salles (dona do Unibanco), num ‘palacete’ na Gávea, na cidade do Rio, é um destes seres.
De gosto refinado, portador de grande conhecimento e memória, Santiago mereceu há cerca de 13 anos atrás um documentário sobre a sua vida. Produzido por Joãozinho – como o argentino chamava o cineasta João Moreira Salles, filho de seu patrão da casa no bairro carioca – o vídeo acabou por não sair, sendo editado, com um novo olhar e enfoque, apenas neste ano. Santiago faleceu antes de saber que seu documentário iria realmente sair, com mais de 80 anos de vida e de muita história.
Apesar do doc. de João Moreira Salles não possuir o enfoque no ‘personagem central’, mas em como fazer – ou não fazer – um documentário, e como foi a vida para o documentarista na casa de sua infância, é impossível não prestar total atenção ao peculiar Santiago. O mordomo fala em um espanhol italianado, aquela típica cara de argentino-europeu. Um velho meio-interaço, meio acabado, que carrega uma peruca – que quase consegue ser imperceptível.
Apesar de não possuir família, o senhor de bengala nas mãos, que acata todas as ordens de “portar-se naturalmente” no filme de seu antigo patrãozinho, tem a companhia de centenas de pessoas em seu modesto apartamento. São os membros da aristocracia universal – lista que o velho mordomo compôs por mais de 50 anos de vida. As milhares de folhas empilhadas em uma estante sob um antigo relógio de parede une desde dinastias antigas, como os nomes mais importantes do povo hitita, da Pérsia, do Egito, até as famílias italianas, nobrezas inglesas e francesas mais recentes. E tudo documentado em inglês, francês, italiano e português.
Tudo o que o velho Santiago comenta, suas histórias, paixões e admirações pelo que é fino, que é europeu, são curiosas. Suas rezas em latim, a obrigação de tocar piano de fraque, pois afinal “é Beethoven”, e a capacidade de tocar castanholas acompanhando o ritmo de uma música clássica, tudo é único. Triste é não saber o que ele realmente queria dizer, já que todo o documentário é manipulado para ironicamente ter naturalidade. João Moreira Salles que deve se sentir culpado, mas o perdoamos por ter criado a revista piauí, vai. E afinal, é de muita coragem o cineasta escancarar seus erros do passado, e aprender com eles, criando uma obra muita boa de se ver.