Brasil, final da década de 50. A seleção canarinho acabara de ganhar seu primeiro título mundial depois de amargar nas Copas de 1950 e 54. Mas não era só a era de ouro do Brasil futebolístico; o popular Juscelino Kubitschek presidia o país rumo ao progresso e Brasília surgia pulsante como promessa de uma nação em pleno desenvolvimento.
No entanto, enquanto o Rio de Janeiro ia perdendo o brilho como Distrito Federal, uma carioca de Engenho de Dentro pouco se importava com os rumos do país ou do futebol - sua preocupação maior era quando iria reencontrar o charmoso mineiro que era tão repleto de cabelos grisalhos quanto de ideias avoadas. Apesar de maior de idade e dona de si - já tinha seus 30 e poucos anos -, Diná se perguntava o que o pai acharia do misterioso mineiro. Seu José era homem sério e, como pai de família da época, gostava das coisas em ordem militaresca - o que não interferia em nada em sua predileção por uma cachacinha e o costume de se vestir de índio e mulher nas folias de Carnaval da Cidade Maravilhosa.
Enquanto isso, em um outro ponto da Cidade, Geraldo devaneava com vários projetos, esses impulsionados pela era em que vivia: dividia com o conterrâneo JK a ambição e, mesmo que figuradamente, o sangue cigano - não era homem de parada, gostava da rua, do novo. Desapegava-se caso fosse necessário; ninguém sabia de seu passado nem família nas Minas Gerais. E foi com este espírito empreendedor que migrou da terrinha do queijo com goiabada para o iminente Estado da Guanabara, começando a trabalhar como sapateiro, mas sonhando alçar novos voos.
JK e Didi, 1958
Assim sendo, a personalidade calma da carioca parecia balancear o furor característico do mineiro. Os dois se complementavam e não demorou para o namoro engatar. Diná, conhecida pelo temperamento calmo, talvez pensasse que Geraldo fosse mudar com o tempo, já que seus quarenta e poucos anos deveriam lhe trazer a maturidade de viver mais com os pés no chão. Diná enganara-se. Geraldo logo perceberia que o trabalho na sapataria denotava a necessidade do pisar seguro na terra, o que lhe desagradava; o mineiro queria tirar os pés do chão. E foi tirá-los literalmente - conseguiu um emprego de garçom no alto do Pão de Açúcar. Geraldo ia, pouco a pouco, alçando voos mais altos, sempre com sua amada na garupa.
E ainda no clima de positividade nacional, os dois se casaram na cidade que divorciava-se do papel de Distrito Federal. Geraldo, que não era besta nem nada, logo achou o Pão de Açúcar e o Rio pequenos demais para seus planos. Sempre nos passos do compadre de ciganagem Juscelino, sairia do Estado Fluminense em busca de uma terra prometida. Enquanto JK rumava sentido norte para Brasília, Geraldo vislumbrava um futuro promissor mais ao sul, no interior do Paraná.
Casada e de mala e cuia, foi assim que Diná despediu-se do Rio e da família na Baixada Fluminense. Iria embarcar nos sonhos do marido como também no trem, em direção à cidadezinha tingui de Ibiporã. Largaria tudo para trás sem saber ao certo quando veria os seis irmãos novamente; afinal, transporte naquela época não era coisa fácil. Mas apesar da personalidade serena, Diná era forte, carregava o sangue paraíba materno nas veias. Em busca de uma nova vida - afinal, os projetos mirabolantes do marido agora eram os seus -, Diná espelhava-se em dona Baubina, a mãe que perdera há alguns anos.
Antiga estação de trem de Ibiporã, 1935
Baubina largou uma vida difícil no Nordeste e, ainda moça, migrou para o Rio de Janeiro. A nordestina, dona de longa cabeleira preta e lisa que não lhe escondia a ascendência indígena, veio sozinha a Cidade Maravilhosa. Trabalhou como doméstica antes de conhecer o carteiro José, com quem casaria e teria sete filhos - Diná era a segunda mais velha. A paraibana nunca mais voltaria à terra natal ou reencontraria a família - os filhos e o marido tornaram-se a sua vida.
E assim Diná também pensava - o marido e o filho que carregava no ventre eram agora sua vida. Com a experiência de garçom, Geraldo logo abriu um bar em Ibiporã. Aos trancos e barrancos, o mineiro foi tocando a vida e, quando menos esperou, um segundo e um terceiro filho pintaram. Apesar das dificuldades, Diná era feliz e realizada; a situação financeira lhe permitia viagens esporádicas à família na Baixada Fluminense.
No entanto, talvez inspirado pela paixão pelo futebol e a seleção canarinho ou pelos três filhos homens que já podiam lhe render um timinho, Geraldo mais uma vez trocou de profissão. Agora tiraria os pés do chão no balanço dos toques e dribles: iria virar técnico de futebol. E assim o fez, começando a treinar o Estrela do Norte, time ibiporãense que participava dos campeonatos regionais da época.
Como mulher companheira que era, Diná embarcou, mais uma vez, na nova empreitada do marido. Geraldo construiu, ao fundo de sua casa, um imóvel que funcionava como concentração dos jogadores - lá eles tinham leitos e refeitório. Com o apoio da mulher e a parceria dos sócios, o mineiro tocava o time e despedia-se dos filhos e da mulher todos os finais de semana, viajando Estado afora para participar dos jogos e torneios paranaenses. As saídas, ao mesmo tempo que abrandavam o espírito desbravador de Geraldo, o deixavam saudoso da querida carioca e dos três bacuris. O cotidiano parecia bom, fácil - o homem encontrara a forma perfeita de se assentar na vida.
E tudo corria bem, se não fosse o tal do destino. Um dia, sem perceber, um mosquito barbeiro te pica e a doença, que poderia estar ali armazenada há anos ou semanas, te acomete. De repente, Diná já não tinha mais a mesma disposição, sentia febre, falta de apetite, mal-estar. Estava grávida. E com Chagas. Acamada, não conseguia ao menos dar atenção aos filhos, cuidá-los, amá-los. Enquanto os meninos ficavam na casa de comadres, Geraldo desdobrava-se para trabalhar e estar presente; para cuidar da mulher adoentada e ver os filhos. Sua vida ia esfumaçando-se na sua frente, sem solução.
Diná faleceu logo após dar vida a Sumirã. Ela era sua primeira menina. Também com Chagas, a bebê morreria cerca de um mês depois. E Geraldo? Já não era mais o mesmo. Perdera a mulher de sua vida; perdera Sumirã. Em visita à família da esposa no Rio, ficaria marcado na memória o dia em que chegou à casa de dona Lucy, sua cunhada, e, sem dizerem nada, abraçaram-se, sentaram-se e choraram a morte da esposa e irmã amada.
Únicas fotos existentes de Diná e Geraldo
Geraldo definharia em poucos meses. A morte o levou em menos de um ano. Das lembranças dos filhos, a imagem do pai meio maluco, avoado. De como Geraldo os levava ao Rio de Janeiro para visitar os tios e primos e, nas paradas de trem, tinha a estranha mania de sair do vagão, esperar a maria-fumaça locomover-se e, a ponto de perder o trem e os filhos, correr e atirar-se na porta. Talvez quisesse buscar a emoção perdida, a adrenalina cigana do embarque imprevisto a uma nova paragem. Mas o mineiro não era besta nem nada. Ao fim da vida, admitiria para si mesmo que o plano mirabolante mais eficaz de sua vida foi o de conquistar a bela carioca Diná e torná-la sua esposa. Morreu do coração, dizem. Para alguns, morreu de dor no coração, mas no sentido figurado - morreu por amor a Diná.
E DEPOIS - Sem pais, os três filhos de Diná e Geraldo tomariam, de início, rumos diferentes. Apesar da vontade de se reencontrarem, a vida tem desses percalços e os irmãos só estariam juntos novamente ao final da década de 70. Seguiriam tocando a vida e dariam, ao longo dos anos, seis netos a Diná e Geraldo. E fariam com que a neta mais velha, Mariana, finalmente descobrisse a história dos avós de quem só possuia um retrato - e, infelizmente, foto não revela lembranças ou personalidade. Mariana sentiria saudades dos avós que não conheceu e, como forma de homenageá-los, escreveria estas tortas linhas do que poderia ter sido descoberto numa conversa informal, regada a pão e café, em algum canto do Brasil. Afinal, Mariana não é besta nem nada. Ela sabe que seu Geraldo era homem cigano e que vovó Diná iria atrás do vovô aonde quer que ele fosse.
Após anos sem se ver, os três filhos de Diná e Geraldo se encontram. 1978.